• O povo constrói Abril e enfrenta a reacção

A contra-revolução afia os dentes

Hugo Janeiro
Após 48 anos a viverem sob o pesado jugo da ditadura, milhares de pessoas invadem as ruas, cercam os fascistas nos seus próprios quartéis e gritam a plenos pulmões a tão ansiada liberdade. Forjado pelo combate contra a repressão e organizado pelo Partido de vanguarda, o povo tomou Abril em mãos e construiu a Revolução. Contrários às aspirações populares, saudosos do regime que escondeu o pão e amordaçou Portugal, os agentes da contra-revolução querem matar à nascença o sonho da sociedade nova que os trabalhadores explorados e os militares progressistas teimavam em semear na cidade e no campo, no norte e no sul de um País reconquistado.
O levantamento militar de 25 de Abril de 1974 abriu as portas da liberdade.
Enquanto o Movimento das Forças Armadas (MFA) derrubava o regime fascista, um gigantesco movimento popular imprimia, por todo o país, uma dinâmica revolucionária ao levantamento
A mobilização popular contribuiu decisivamente para a conquista da liberdade, garantindo a institucionalização da democracia e determinando o sucesso das mais marcantes conquistas de Abril como realidades concretizáveis.
Nascida nas primeiras horas da Revolução e plasmada na imagem de um cravo vermelho no cano do fuzil, a aliança Povo-MFA permitiu levar a democracia e a liberdade às suas mais genuínas expressões.
A força do povo unido deitou mãos à obra e transformou a sociedade, com os comunistas e outras forças consequentes da Revolução.
Nas empresas, os trabalhadores asseguraram o controlo dos sectores fundamentais da economia nacional e impediram a sabotagem económica por parte do grande capital, nostálgico da ditadura com a qual se havia desde sempre comprometido.
Nos campos do Ribatejo e do Alentejo, os operários agrícolas encontraram formas colectivas de produção e distribuição da terra, realizando a Reforma Agrária.
Correspondendo às exigências objectivas, foram universalizados os direitos ao ensino, à saúde, à habitação, ao salário mínimo nacional e a tantas outras regalias sociais.
Com os olhos postos no socialismo, os trabalhadores não esperaram que nenhum poder lhes conferisse legitimidade formal, deram criativos passos em frente no caminho da construção de um País novo, onde o povo passava a ser quem mais ordenava.
Mas a contra-revolução afiava os dentes e, desde as primeiras horas, procurou travar o andamento da Revolução de Abril.

Spí­nola e o golpe Palma Carlos

Os órgãos provisórios emergentes do derrubamento da ditadura revelaram-se, desde logo, espaços onde coabitavam as forças revolucionárias com a mais caceteira reacção, gerando conflitos e contradições de diversa natureza no seio do recentemente instituído poder político-militar.
Acompanhado por operacionais militares e políticos provenientes da ditadura, Spínola cedo tentou afogar as esperanças de liberdade e democracia, ora através da Junta de Salvação Nacional (JSN), da qual era presidente e na qual havia metido parte dos seus «homens de mão», ora através do uso abusivo das funções de Chefe de Estado que a conjuntura lhe confiou.
Na noite de 25 de Abril de 1974, aquele que viria a ser o principal animador e congregador da contra-revolução e feroz opositor do Programa do MFA, procurou chamar a si o comando das operações e impor um controle autocrático da situação, nomeadamente através do estancamento da acção política das massas, do impedimento da liberdade de associação e de constituição de partidos, do não reconhecimento da legitimidade da autodeterminação das então colónias ultramarinas, da tentativa de travar a libertação dos presos políticos e de manutenção da PIDE.
Ficou célebre a frase proferida por Spínola no dia 26, quando declarou que «já foi chamada a atenção da DGS e creio bem que passará a agir por forma a que não mereça mais quaisquer reparo pelo povo português». Igualmente demonstrativa do ódio do general à Revolução e aos seus obreiros mais consequentes, é a proposta feita, no dia 30, ao Secretário-Geral do PCP, Álvaro Cunhal, a qual se consubstanciava na não legalização do Partido, da sua acção, dos seus símbolos e da sua imprensa. A resposta correspondeu objectivamente à realidade que se vivia, e Spínola não só não tinha condições para impor tal enormidade como procurava chegar onde o fascismo não havia chegado durante 48 anos de brutal repressão.
Contrariado nos seus intentos pelos militares revolucionários e pelo povo, Spínola deu posse ao I Governo Provisório, a 16 de Maio de 1974, liderado por Palma Carlos, facto que não só o irritou por não ser o executivo com que desejaria contar, mas também por a constituição de um Governo Provisório com representação de todos os sectores democráticos corresponder ao indicado pelo PCP, nos primeiros dias de Abril, como fundamental para a realização de eleições verdadeiramente livres.
Enquanto o Governo, com todas as contradições inerentes à sua composição, resistia à pressão quotidiana da reacção, Spínola discursava amplamente no seio das instituições militares e preparava, com alguns dos ministros, entre os quais Sá Carneiro e o próprio Palma Carlos, o assalto ao poder.
Chumbada no Conselho de Estado uma proposta de dissolução da JSN e do MFA, Palma Carlos recoloca-a, dois dias depois, a 10 de Julho, na reunião do Conselho de Ministros, tentando a atribuição do poder pessoal ao Presidente da República. PS e PPD, entre outros, votaram favoravelmente mas o projecto foi vencido.

A «Mai­oria Si­len­ciosa»

Liquidada a primeira tentativa golpista, toma posse, a 18 de Julho de 1974, o II Governo Provisório, com Vasco Gonçalves como primeiro-ministro e Portugal decididamente mudado.
Depois das gigantescas manifestações do 1.º de Maio, muitas outras iniciativas de massas lhe sucederam, marcando o ritmo das reivindicações populares e laborais, demonstrando o empenho do movimento sindical unitário, do PCP e outras forças democráticas em conduzir a bom porto a liberdade recentemente conquistada e os direitos económicos, sociais, políticos e culturais, com o povo e pelo povo.
Mas contra o povo continuava a agitar-se a conspiração. A par de uma intensa campanha mediática urdida e financiada pelos monopólios ameaçados pela força dos trabalhadores e da sua Revolução, Spínola volta à carga.
Servindo-se dos mesmos aliados, apela à reconstituição de uma «autoridade forte» personificada na sua imagem de chefe militar e traça o caminho de uma «marcha sobre Lisboa» protagonizada por uma «maioria silenciosa» que não se revê no curso da Revolução e sonha limpar do Governo Vasco Gonçalves, os comunistas e sectores democráticos e progressistas.
Entre a libertação de Pides, bufos e ex-membros do Estado fascista, os spinolistas contam «cabeças» no seio das forças armadas e procuram desestabilizar os quartéis.
No plano das organizações políticas e sociais, os golpistas granjeiam o apoio explícito do CDS e do PPD, formam os partidos do Progresso e Liberal - que contam nas suas fileiras com destacados quadros do fascismo - arregimentam algum clero que realiza autênticos comícios contra o II Governo, organizam os latifundiários que prometem marchar sobre a capital e esmagar a Revolução debaixo das rodas dos tractores.
Em Moçambique, os fascistas ocupam o Rádio Clube, libertam os correligionários da cadeia e provocam escaramuças violentas que se saldam em cerca de uma centena de mortos. Rapidamente se difunde o boato de uma vitória fascista em Lourenço Marques.
A intentona parece imparável e, entretanto, um grupo de capitalistas encabeçado por António Champalimaud e José Manuel de Mello revelam um programa económico para «salvar» a economia e prometem que o novo governo contará com um investimento de 120 milhões de contos e mais 150 mil novos empregos.
A manifestação, marcada para 28 de Setembro e amplamente divulgada em milhares de cartazes, merece destaque nos órgãos de comunicação da contra-revolução e Spínola, contando com a vitória, marca para o Campo Pequeno uma acção provocatória de vexamento do primeiro-ministro, onde Vasco Gonçalves é apupado, e assiste ao apelo à participação na manifestação agendada para daí a dois dias, frente ao Palácio de Belém, na qual a dita «maioria» viria apoiar Spínola, exigir a demissão do Governo e a inversão das conquistas alcançadas.
Com Mário Soares, à data ministro dos Negócios Estrangeiros, num revelador périplo pelos EUA e pela Europa Ocidental e contando com o apoio de Sá Carneiro e Freitas do Amaral, Spínola lança um ultimato, na noite de 27 para 28 de Setembro, ao II Governo e, perante a recusa deste em aceder às suas exigências, aprisiona no Palácio de Belém o Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, Costa Gomes, o primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, e, posteriormente, Otelo Saraiva de Carvalho, comandante do Comando Operacional do Continente (COPCON).
A ideia era impedir que os órgãos do poder político-militar reagissem ao golpe, garantindo o seu sucesso.
Como há largas semanas vinha advertindo o PCP, a contra-revolução preparava-se para suprimir a democracia e a liberdade.
O Partido, o povo e os militares progressistas não ficaram parados e, de Norte a Sul, montaram barragens para impedir a «marcha sobre Lisboa» demonstrando a vigorosa resposta do movimento popular à intenção de restabelecer uma nova ditadura em Portugal.
A reacção não passou! Os trabalhadores cortaram as asas aos «maiorais da minoria», como lhes chamou Ary dos Santos, e fez o que o PCP havia indicado com justeza, oito dias antes, num discurso do seu Secretário-Geral, Álvaro Cunhal: «se a reacção aguça os dentes e se prepara para morder, é necessário partir-lhos antes que morda».
A vigilância revolucionária não afrouxou, respondendo, mais uma vez, positivamente à análise feita, já no dia 28, pela Comissão Política do Comité Central do PCP, que sublinhava que «se não se aprofunda a vitória, não passará muito tempo que não volte a ofensiva».
Dois dias depois, entre comunicados e negociações contraditórias, Spínola é demitido e leva consigo três dos seus falcões, Galvão de Melo, Silvério Marques e Diogo Neto. A Comissão Coordenadora do Programa do MFA ficou. O «companheiro Vasco» também. Spínola recolheu à sua quinta em Massamá donde passou a coordenar nova ofensiva, coadjuvado pelos compinchas do costume, os agrários, a burguesia industrial, fascistas de toda a espécie, as direcções do PPD e do CDS e quadros com elevadas responsabilidades na direcção política do PS, de Mário Soares.

11 de Março, o «baile de tar­tufos»

Afastados do poder na sequência da derrota no golpe de 28 de Setembro, Spínola e os seus comparsas prosseguem na via da contra-revolução, desta vez através de um golpe sobretudo militar, embora mantendo estreitas relações com o PPD, o CDS e, em moldes não totalmente claros, com o próprio PS. Com peso na correlação de forças da reacção, assumiam ainda posições de destaque a CIA, representada pelo Embaixador dos EUA, Frank Carlucci, o Exército de Libertação Português, com apoios logísticos significativos da parte do fascismo espanhol, e uma «rede de oficiais», assumidamente anticomunistas, que minaram algumas unidades das forças armadas.
O Processo Revolucionário em Curso (PREC) iluminava o caminho de construção de uma sociedade sem opressores nem oprimidos e, sob impulso de um crescente movimento popular, cada vez mais consciente, a Revolução processava-se e transformava a realidade.
O grande capital exige uma nova intentona. As provocações da direita são uma constante e as organizações esquerdistas encontram nos pseudorevolucionários, militares e civis, terreno fértil para difundir o seu radicalismo verbal, contestar Vasco Gonçalves, o PCP e os seus aliados, dando um empurrão à ideia de instabilidade galopante.
Os agentes da contra-revolução lançam o boato de que o PCP elaborara uma lista de alvos a abater, e que tal se consumará na designada «matança da Páscoa». O pretexto era ardiloso e compunha o plano de assalto ao poder gizado por Spínola, que sonhava ver legitimada a sua acção e, de passagem, eliminar definitivamente os comunistas, o pujante movimento sindical e as organizações populares.
A base de operações estabelece-se em Tancos na noite de 10 para 11 de Março. Os pára-quedistas atacam o RAL 1 pela manhã, mas nem os militares progressistas se rendem, nem os militares da reacção contavam com a mobilização do povo em defesa da unidade de Sacavém. Dinis de Almeida, comandante da unidade, e António Dias Lourenço, dirigente do PCP, explicam aos soldados «páras» que Spínola os havia enganado. Este, mais uma vez derrotado, foge para Madrid.

O 25 de No­vembro

O período que se seguiu ao golpe de 11 de Março foi marcado por grandes conquistas por parte dos trabalhadores.
O povo reforça a aliança com os militares de esquerda e com o novo Governo Provisório, que continua a ser liderado pelo «companheiro Vasco».
Na zona do latifúndio avança a reforma agrária, o Estado nacionaliza os sectores chave da economia nacional em resposta à crescente sabotagem económica e os operários assumem papel preponderante na condução dos destinos das empresas.
Um ano após a Revolução dos Cravos, o povo português vai às urnas e participa em massa no acto eleitoral que elege os deputados à Assembleia Constituinte. O PS vence o sufrágio e o PCP obtém 30 deputados no hemiciclo.
Galvanizado pelos resultados, o PS lança-se abertamente na provocação e, juntamente com o PPD, abandona o executivo obrigando à tomada de posse do último Governo provisório liderado por Vasco Gonçalves.
O «Verão quente» revela os mais bárbaros ataques contra os trabalhadores e o seu Partido, entrando em cena o terrorismo bombista (ver página seguinte).
A esquerda militar, agitada pelo radicalismo esquerdista, entretém-se com conflitos intestinos e a contra-revolução conspirara um novo golpe.
A tese, mais uma vez falsa, é a da resposta a um golpe em preparação por parte do PCP, num clima de boatos e intrigas que culmina com o pronunciamento militar de Tancos, a 2 de Setembro, e o afastamento definitivo de Vasco Gonçalves.
O PCP alerta sucessivamente para o perigo real de um golpe da direita fascista que vê chegada a oportunidade de esmagar a «comuna de Lisboa».
Antes do golpe, PS, PPD e CDS fazem aprovar na Assembleia Constituinte uma disposição que permite que esta reuna em qualquer parte do espaço nacional. Com o golpe já em marcha, Soares ruma ao Porto e, no dia 25 de Novembro, consuma-se a vitória militar com a ocupação dos meios de comunicação e as movimentações da reacção nas bases de Monte Real, Cortegaça e na ocupação do Estado-Maior da Força Aérea.
O «Grupo dos Nove», agora receoso de estar de novo a abrir as portas à vitória dos fascistas, procura uma solução política que os salvaguarde da previsível repressão que tal constituiria, e encontra no PCP e em outros antifascistas a solução para a manutenção da liberdade e da democracia, conquistadas nos últimos vinte meses.
Na sua plenitude – instauração de uma ditadura fascista, eliminação física dos comunistas, do movimento popular e sindical, supressão das liberdades democráticas – o golpe de 25 de Novembro não serve aos bombistas e aos spinolistas, mas representa, de alguma forma, o ponto de viragem na persecução do sonho de construir em Portugal uma sociedade onde o Homem não fosse mais escravo do Homem.


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Comemorar Abril

A Comissão Política do PCP apela à participação nas comemorações do 25 de Abril, pois «ontem como hoje é pela luta e intervenção que se afirmará a vontade e determinação dos trabalhadores e do povo em defender e afirmar as conquistas e direitos da Revolução de Abril».

Das provocações à lei da bomba

O período do «Verão quente» de 1975 foi o mais conturbado da breve mas fascinante história da Revolução de Abril. Derrotadas três tentativas golpistas cujo fim era impedir a concretização do Programa do MFA, travar a aplicação concreta das conquistas revolucionárias e aplicar um novo regime ditatorial de cariz fascizante, a reacção põe em marcha uma espécie de «solução final».

Comemorações em todo o País

Os 30 anos do 25 de Abril vão ser comemorados em todo o País. Em Lisboa, a manifestação está marcada para as 15h30 no Marquês do Pombal e segue para o Rossio. No Porto, o desfile inicia-se às 15h na Rua do Heroísmo e termina na Praça da Liberdade.