- Nº 1585 (2004/04/15)

A estratégia do entretém

Argumentos

Na rubrica «Outras Conversas» (SIC-Notícias) estavam o neurocirurgião João Lobo Antunes e o pintor Júlio Pomar a ser entrevistados por Maria João Avilez, coitados. E, a certo passo, Lobo Antunes referiu-se em termos de denúncia, aliás justificadíssima, ao clima de «cultura de entretenimento» que está a servir para desviar a atenção de todos nós dos acontecimentos e problemas terríveis que são o mais importante do nosso tempo. Júlio Pomar, por seu lado, acrescentou que sempre foi assim, entendendo-se que se o foi tê-lo-á sido decerto de outra maneira, mas esse dado adicional não desmente o que parece fundamental e eventualmente decisivo: que as grandes questões assumem hoje uma dimensão nunca antes atingidas e que arrastam eventualidades verdadeiramente apocalípticas como nunca antes acontecera. De onde, nem seria preciso dizê-lo, a enormíssima responsabilidade de quem se aplica a retirar visibilidade ao que mais importa e a colocar em seu lugar, bem à vista, aspectos menores e porventura relativamente fúteis. Não direi que esta prática corresponde afinal a uma espécie de censura: em vez de suprimir brutalmente o que mais importa mas é tido por alguns como inconveniente, substituí-lo por assuntos de facto secundários ainda que não de todo irrelevantes, porque assim o apagamento nota-se menos. Não o direi, pois; mas bem podia fazê-lo por perfeitamente adequado.
De qualquer modo, o caso é que a chamada de atenção de João Lobo Antunes me fez lembrar o que estava, e porventura continuará a estar a passar-se quando estas linhas forem publicadas, no Iraque em geral, e, nesses dias, muito especialmente na cidade de Falluja. Ali, desde os últimos dias da semana anterior, os militares norte-americanos tinham instalado um clima de ferro e fogo alegadamente para encontrarem os responsáveis pela morte de quatro seguranças privados (!) americanos. Em consequência, e mesmo segundo um jornal tão insuspeito de «anti-americanismo» quanto o «Público», massacraram mais de seiscentos iraquianos, afora os feridos, sem atingirem o objectivo anunciado. Porém, outras fontes completam o quadro terrível. Segundo a italiana Paola Gaspiroli, as tropas norte-americanas desrespeitaram a trégua em dada altura acordada, a após terem dado instruções para que a população civil abandonasse a cidade, no que foram pelo menos parcialmente obedecidas, os civis viram-se praticamente presos no deserto, e o comboio que organizaram com o objectivo de chegarem a Bagdad foi alvo de bombardeamentos sem que minimamente se atendesse ao facto de ser constituído principalmente por velhos, mulheres e crianças. Quanto a Falluja, foi bombardeada por aviões B-52 e sobre ela foram despejadas bombas de fragmentação e obuses de novo tipo que «saltam» 3 e 4 metros. Escusado é dizer que os efeitos deste método bárbaro foi tudo menos selectivo e cirúrgico.

A venda

Enquanto isto, os telenoticiários dos canais portugueses abertos e generalistas continuaram a sua rotina de abrirem com notícias de importância menor, mesmo quando têm alguma, cujo relevo é quase sempre obtido à custa do empolamento conseguido pelo próprio alinhamento das informações. Nos casos que ainda se revestem de alguma seriedade e/ou consistência, são acidentes ou outras desgraças relativamente miúdas, pelo menos em confronto com as tragédias que assolam o mundo. Noutros casos é mais um capítulo da exploração de escândalos cujo tratamento não apenas é desmesuradamente ampliador como é também um eficacíssimo deseducador do bom senso, do bom gosto e, sobretudo, de uma inteligente e correcta visão do mundo e do país. E a este desgraçado método não escapa a estação pública, embora talvez com menos fragorosa evidência que nas estações privadas. Diz-se, como é sabido, que tem de ser assim para que haja audiências, publicidades, receitas. Mas não se diz o resto: que assim se faz uma venda ilegítima e eticamente insustentável, embolsando dinheiros por troca com a lucidez dos telespectadores, o seu entendimento das coisas, a longo prazo talvez um significativo fragmento da sua inteligência. E o resultado final será sempre o de nos «entreter» com aspectos secundários, mesmo se temperados de forma a tornarem-se apetitosos, e de nos desviar a atenção do que é primordial. Como o dr. João Lobo Antunes, quando entrevistado por Maria João Avilez, coitado, denunciou.

Correia da Fonseca