
- Nº 1584 (2004/04/8)
Uma tremenda trapaça (04)
Sociedade civil e globalização
Argumentos
Diga-se o que se disser, o principal traço comum às hierarquias religiosas e aos gestores do capitalismo liberal é o princípio do acatamento incondicional da autoridade das chefias. Aliás, como admitem facilmente cardeais e tecnocratas, não são democráticos os seus padrões de organização. Na Igreja manda o Papa. Nas empresas os patrões. E os chefes fazem-se obedecer. A cadeia hierárquica do Vaticano funciona nesta lógica. O mesmo se passa na política quando o poder é ocupado pela direita e pelos monopólios privados.
Obedecendo a uma lei universal, a direita agora detentora do poder em Portugal resvala, inevitavelmente, no sentido da submissão à extrema-direita, enquanto que o bloco das oligarquias procura esmagar as instituições democráticas. Nesse percurso, porém, torna-se evidente não serem do interesse das elites as inevitáveis reacções das classes exploradas. Preferível se tornaria, sem dúvida, a revolução silenciosa que o governo deseja. Mas deve admitir-se como provável que se acentuem os conflitos sociais e os trabalhadores, tal como a grande parte da população, voltem a suscitar o dilema já aparentemente esquecido: democracia ou plutocracia musculada? capitalismo ou socialismo?
Cardeais e banqueiros estudaram o problema, meditaram-no e acharam que a solução alternativa poderia consistir no estabelecimento de alianças precárias entre o patronato, o Estado capitalista e o proletariado. Nada de institucional. Apenas um enunciado de princípios éticos que estabelecessem uma zona-tampão capaz de desmobilizar as revoltas sociais causadas pelo combate à exploração e ao saque praticados pelas elites. O que significava, na prática, a abertura de uma terceira via entre as relações antagónicas do capital e do trabalho. E é assim que, para afugentar a indesejável luta de classes, surge e ganha corpo a ideia de sociedade civil. Nada de programas sociais concretos ou de compromissos fixos, com prazos datados. Simples «pacotes» de intenções flexíveis, sem ambições, vagos (pactos históricos, combate à pobreza, justiça social, auto-estima, etc.) e agradáveis de escutar. Enquanto isto, o alargamento efectivo do quadro de garantias e privilégios reconhecidos aos sacrossantos interesses da propriedade privada, à sombra de uma mediática e mítica sociedade virtual (ou civil ).
Neste ponto, voltamo-nos a encontrar com os interesses cruzados do capitalismo e da igreja institucional. Se o capitalismo não dispõe de ideologia própria, é necessário que uma outra força associada (accionista estratégica de conteúdos, como tecnicamente se diz) lhe forneça essa mais-valia e consiga emprestar aos exploradores uma aparência ética minimamente aceitável, por troca de sinergias. É este um desempenho fundamental que o Vaticano aceita chamar a si entusiasticamente. Ainda há poucos dias, ao discursar em Paris perante uma assembleia eclesiástica ultra-conservadora (Público, 1.3.04), D. José Policarpo defendeu «a necessidade de se provocar rupturas nas estruturas de desenvolvimento». Desta forma repetia afinal o cardeal-patriarca (envolvendo toda a igreja portuguesa a que preside) o mesmo que fora dito, dias atrás, nas sessões magnas do Convento do Beato, pelos barões da alta finança. A coincidência tem uma explicação simples. O Vaticano entra no negócio da globalização com a sua doutrina social, com a economia social de mercado e com a ética empresarial. O poder laico assume o odioso da destruição dos direitos dos povos. E o empresariado capitalista transfere o património comum para os cofres dos ricos. Entretanto, bispos e cardeais falam em justiça social. Os ministros proclamam que tudo lhes é permitido, visto terem ganho as eleições. Ao mesmo tempo, impunemente, os banqueiros rasgam os códigos das leis, a Constituição e os tratados internacionais. Impera o capitalismo selvagem que a doutrina católica declara recusar. Os bispos vêem, entendem, partilham os lucros e ... dizem que nada sabem. É uma tremenda trapaça! A mesma que a muito devota Maria José Nogueira Pinto (CDS/PP) definiu lapidarmente, como provedora da Misericórdia de Lisboa: «Esta é uma santa casa mas o negócio não é pecado» (Jornal Público, 13.7.02). Portugal está assim, 30 anos passados sobre o 25 de Abril.
Jorge Messias