
- Nº 1582 (2004/03/25)
Saudades do 24
Argumentos
Alinho esta crónica no dia em que a TV me informa de que a mando expresso de Sharon, averiguadamente um assassino compulsivo alvo de queixas na justiça internacional, bravos militares de Israel mataram com um «rocket» um velho tetraplégico que se deslocava numa cadeira de rodas. É claro que, depois de ouvir a notícia, fiquei cheio de vontade de fazer dela o eixo da crónica que devo escrever. Designadamente para dizer que ao explicar-se que o velho assassinado era dirigente e mentor de um grupo terrorista se esconde que há outro modo de o caracterizar: como chefe de um movimento de resistência que hostiliza com os meios de que dispõe, e não incluem helicópteros e «rockets», os ocupantes da sua terra. Um tanto como, era eu garoto, os «terroristas» da resistência francesa abatiam os soldados nazis que ocupavam a França e que fuzilavam civis inocentes, de preferência comunistas... e judeus.
De qualquer modo, o certo é que antes de eu receber a notícia do dia já tinha o projecto de abordar hoje e aqui um outro assunto: o olhar que a RTP, em tempo de comemoração dos seus quarenta e sete anos de existência e de recapitulação da sua vida, lançou sobre o período que se seguiu a Abril de 74. Mediante uns tantos depoimentos, alguns dos quais prestados por quem ao tempo pouco mais seria que adolescente distraído e razoavelmente ignorante, foi claramente sugerido ao telespectador de boa-fé que aquele foi um tempo de ferozes saneamentos selvagens, de informação ferreamente controlada pelos comunistas, de programação sectária e chata em consequência de uma obsessão revolucionária. Ora bem: acontece que este é um cenário mentiroso e nada inocente. Corresponde, uma vez mais, à prática em vias de generalização no sentido de refazer a História, nela distribuindo o papel odioso aos comunistas ou os que com comunistas se pareçam e o papel de simpáticas vítimas às gentes do 24 que, de resto, estão agora de novo nos poderes, quer directamente quer através dos seus herdeiros. Porque, note-se, pois flutuam por aí coisas muito esquecidas, os apoiantes do 24 não eram nem são apenas os que gostam de certas fardas e de braços estendidos em saudação. Entre a direita bruta, a direita dos interesses e a direita compactamente estúpida, não há delimitações rigorosas.
Repondo algumas verdades
Não caberá aqui tudo o que haveria para dizer, mas é forçoso abordar um ou outro ponto com mais capacidade de penetração nos telespectadores desprevenidos. As saídas compulsivas da RTP por força da revolução de Abril (da revolução, sublinho) foram tão escassas e insuficientes que, depois delas, um funcionário superior da RTP repetia que «isso do 25 de Abril não entra aqui!», e nunca lhe aconteceu nada. Compreende-se o desgosto sentido por Henrique Mendes ao ser afastado com a explicação de ser «a imagem pública da televisão» fascista, mas a verdade é que o era, e não apenas ele (o caso de Manoel Caetano é um outro exemplo). Para mais, Henrique Mendes dava sinais públicos de rendida reverência perante os seus superiores, isto é, os representantes directos do regime, o que nunca aconteceu com o também despedido Manoel Caetano. Logo a seguir ao 25 de Abril, a Direcção de Informação da RTP foi confiada a Álvaro Guerra, consabidamente socialista, e nunca foi posteriormente ocupada por um comunista. Os programas de cariz politizante, mas nunca partidarizante, que foram transmitidos depois de Abril, foram uma imposição resultante dos anteriores dezassete anos de programas escolhidos à medida dos interesses e da ideologia do regime, intoxicantes e despolitizantes. As belas canções que representaram o País nos Eurofestivais de 74 e 75, acusadas de «ideológicas» por um deponente no programa, não o eram mais que a generalidade das cantigas que a ditadura escolhera antes de Abril, porque o sol-e-dó parvamente romântico não é menos político que uma canção lúcida. As reportagens feitas no interior do País mostravam o povo tal como ele era, isto é, ao que havia sido reduzido, e não o povo como o pensava quem fazia a reportagem, versão que no programa surgiu pela boca de quem tinha a obrigação de dizer coisas mais acertadas e verdadeiras. Designadamente, a mensagem contida no programa «A Política é de todos», expressamente citada, era um esclarecimento fundamental que a posterior contra-revolução tem andado incansavelmente a eliminar.
Com a viciada recapitulação dos seus tempos pós-Abril, a RTP de 2004 revelou os seus pendores porventura mais profundos: hostilidade ao 25, saudades do 24. Já era facilmente pressentível. Por iniciativa da própria, tornou-se comprovado.
Correia da Fonseca