Diário de dois cinismos

11 de Março – Espanha acorda com a notícia de que a ETA tinha cometido o maior atentado de sempre com muitas dezenas de mortos. As bombas colocadas em comboios cheios de trabalhadores e estudantes, explodiam por volta das 7h30 da manhã, numa zona que em termos portugueses pode ser comparada a Moscavide, Seixal ou Barreiro, pela sua tradição de luta contra o franquismo. Hoje ainda é a zona pobre e vermelha de Madrid. O número de mortos e feridos aumenta continuamente.
13 horas – O Ministro do Interior, Angel Acebes, dá uma conferência de imprensa e declara enfaticamente: «A ETA conseguiu o seu objectivo. O Governo não tem nenhuma dúvida de que foi a ETA. É absolutamente intolerável qualquer tipo de intoxicação que vá dirigida a desviar a atenção do objectivo e dos responsáveis desta tragédia». Referia-se, Acebes, à conferência de imprensa que Arnaldo Otegui, líder da ilegalizada Batasuna, que falava em nome da «esquerda independentista basca» logo de manhã e dizia: «Não admitimos nem como hipótese que a ETA esteja detrás destes atentados, porque, primeiro, a ETA sempre avisou da colocação de explosivos e não há nenhum aviso; segundo, nesta acção buscou-se um grande número de vítimas entre trabalhadores e população civil. Penso que se trata de um acto de resistência árabe». (Neste momento, percebe-se que o PP acaba de ganhar as eleições do domingo seguinte porque todas as suas teses estão comprovadas com 200 mortos e 1400 feridos). Os outros partidos PSOE, IU, PNV, CIU, etc., cautelosos durante a manhã, começam a atacar a ETA, com extrema violência.
Declarações institucionais do chefe do governo e do rei atacam o terrorismo, deixam entender que falam da ETA, mas nunca dizem o seu nome. Por acordo entre os partidos, a campanha eleitoral termina.
Entretanto os grandes meios de comunicação internacionais, CNN, FOX, BBC, Tele 5, New York Times, Washington Post, etc., insistem cada vez mais que o atentado não parece obra da ETA, mas da Al Qaeda, ou grupo similar. Esta tese expande-se, mas não tem eco em Espanha.
Sabe-se posteriormente que a ministra dos Negócios Estrangeiros, Ana Palacio, dá ordens a todos os embaixadores para aproveitarem todas as ocasiões para confirmarem a autoria da ETA nos atentados.
Ao mesmo tempo, os correspondentes de meios estrangeiros são pressionados, por funcionários da presidência do governo, com argumentos de que foi a ETA.
19 horas – Acebes dá nova conferência de imprensa e revela que uma carrinha com detonadores e uma cassete com versículos do Corão tinha sido encontrada em Alcalá de Henares. Afirma que a pista principal continua a ser a ETA, mas abre investigações na pista árabe.
Um comunicado enviado a um jornal árabe de Londres reivindicando o atentado não merece credibilidade ao governo espanhol.
Nessa noite, estações como a FOX, porta-voz da direita dos EUA, declaram que o atentado é da Al Qaeda com 99% de probabilidade.
Os jornais espanhóis publicam edições de tarde acusando a ETA de haver cometido um massacre.

12 de Março: durante o dia todo mantêm-se as posições expressas pelo governo.
20 horas – Manifestação com mais de oito milhões de pessoas em toda a Espanha. Cinco minutos antes, a ETA comunica ao jornal GARA e à televisão basca (ETB) que não tem nada a ver com os atentados. Dirigentes da ex-Batasuna manifestam-se contra os atentados nas ruas do País Basco.
Em Barcelona, o vice-primeiro ministro, Rodrigo Rato, e outros dirigentes do PP têm que ser escoltados pela polícia para sair da manifestação, porque centenas de pessoas os acusam de «assassinos e mentirosos». Nas manifestações aparecem muitos cartazes com a pergunta «Quem? Porquê?».

13 de Março – El Mundo intitula na primeira página: «Acebes convencido de que as novas pistas provarão a autoria da ETA». O governo diz que os desmentidos da ETA não merecem nenhuma credibilidade. Curiosamente, quando a ETA reivindica os seus atentados criminosos, o governo dá-lhes imediatamente autenticidade.
Ao contrário do que diz o governo, começa a saber-se que os atentados não são similares aos da ETA. Nem na forma de actuar, nem nos objectivos, nem nos explosivos, nem nos detonadores, nem nas matrículas dos carros roubados, etc. Os meios internacionais duvidam cada vez mais sobre a autoria dos atentados. Os partidos políticos IU, CIU (Catalão) PNV (Basco) começam a exigir do governo saber a verdade e o sentimento de que o governo esconde informação é cada vez maior. A TVE controla e manipula qualquer sinal contra a verdade oficial.
Durante este sábado, 99% das intervenções no 1º canal foram de pessoas do PP. El Mundo publica uma entrevista com Mariano Rajoy intitulada «Seria bom, agora, que houvesse um governo com maioria absoluta». Note-se que é dia de reflexão e que não há campanha desde o dia 11. Acrescenta: «estou convencido que foi a ETA».
Entretanto o PSOE mantém-se num silêncio de aluno bem comportado e a IU diz que o governo utiliza o atentado a seu favor.
Sem explicações, a TVE muda o programa de sábado à noite, e emite o filme «Assassinato em Fevereiro», sobre o atentado da ETA cometido em Vitória em 2000 contra o deputado socialista Fernando Buesa, em que este faleceu juntamente com o seu guarda costas. No dia anterior, o mesmo filme tinha sido passado no canal «TeleMadrid», também controlado pelo PP.
Os meios de comunicação estrangeiros dão mais informação sobre Espanha do que os órgãos oficiais. É cada vez mais claro que a «pista árabe» é a única e que a hipóteses da ETA só interessa ao governo e ao PP.
O mau estar dos partidos e da população aumenta. De manhã, Acebes, ainda insistia nas suas teses.
18 horas – Em frente da sede nacional do PP começam a juntar-se pessoas com pequenos cartazes com a palavra «PAZ» e vão crescendo em número até chegarem a mais de cinco mil. A manifestação não tinha convocador, não tinha figuras políticas, a voz corria por telemóveis e Internet. As palavras de ordem eram inventadas na altura, mas bem claras: «Mentirosos, Mentirosos», «As bombas do Iraque rebentam em Madrid», «Não à guerra», «Televisão, Manipulação», «Com os mortos não se joga», «Faltam 200, por vossa culpa», «Aznar, tu pões a guerra e nós os mortos», «Esto nos pasa por un gobierno facha» (isto acontece-nos por termos um governo fascista).
Em Barcelona, reuniram-se mais de 7000 pessoas e houve concentrações, sempre em frente das sedes do PP, em Valencia, Gijon, Oviedo, Sevilha, Bilbao, Santiago de Compostela, Alicante, Las Palmas, Granada, Saragosa, Badajoz, Palma de Maiorca, Burgos, Vigo San Sebastian e algumas mais. A ideia central era «queremos saber quem foi».
A TVE não diz nada, mas as imagens que capta saem através da «Euronews». O Canal+ mantém uma cobertura em directo durante horas, e por volta das 19 horas a CNN começou a dar as imagens do Canal+ em directo para todo o mundo. Entretanto, sabe-se que a BBC noticiava que Bush lamentava que o apoio de Espanha aos EUA tivesse provocado o atentado de Madrid.
20h45 – Acebes comparece novamente para dizer que três marroquinos e dois indianos tinham sido presos. Na rua as pessoas recebem esta notícia com assobios e gritos de «mentirosos». As manifestações estendem-se por toda a Espanha. Às 21 horas, Mariano Rajoy aparece na TVE muito zangado, democraticamente, dizendo que as suas sedes estavam cercadas. O PSOE decide-se finalmente a dizer que o governo não conta a verdade. Todos os canais da televisão internacionais dão imagens em directo. Estava claro que a rua tinha obrigado o governo e o PP a admitirem que era a guerra do Iraque a razão dos atentados. Passava da meia noite, com dezenas de milhares de pessoas à volta das sedes do PP, quando Acebes decidiu informar que desde as 19h40 tinha um vídeo em que alguém, em nome da Al Quaeda, reivindicava os atentados. Os estrategas do PP devem ter pensado que esse vídeo era uma bomba política, muito difícil de guardar até segunda-feira.
As manifestações duraram até às 3 da manhã de domingo, nesta Espanha, país sem horários e sem regras.

*

Esta crónica, escrita antes de se saber os resultados das eleições, chama-se «Diário de dois cinismos».
O primeiro é o próprio atentado, cometido contra a população trabalhadora da zona pobre de Madrid, num meio de transporte público, e a uma hora em que, seguramente, não estão os poderosos, os que decidiram a aliança de Espanha com os EUA. Muito provavelmente estão as pessoas que se manifestaram contra essa política. Foram estas pessoas que morreram.
O segundo é o governo do Partido Popular. Desde o primeiro momento vêem o perigo que representa para eles que os votantes percebam que a causa das mortes é a aliança Bush-Blair-Aznar. Então, rapidamente culpam a ETA, que já cometeu tanta barbaridade, que é um alvo fácil, que é temida e odiada pela imensa maioria das pessoas. O aparelho trabalha rapidamente, convencem até os partidos da oposição, a Igreja colabora explicitamente condenando a ETA (mas não se desdizendo depois). Aznar compõe a sua personagem mais imperial e declara: «foram mortos pela simples razão de serem espanhóis». Três dias depois sabemos que estes «espanhóis» são de 14 nações: Espanha, Bulgária, Roménia, Polónia, França, Equador, Peru, Colômbia, Honduras, Cuba, República Dominicana, Chile, Guiné-Bissau e Marrocos. Que grande império o deste pequeno Aznar.
Quando as evidências começam a ser esmagadoras, eles, com o ministro «sacristão» à cabeça, Angel Acebes, continuam a mentir repetida e cinicamente. Sempre a olhar para o relógio. Era preciso aguentar pelo menos até às 8 horas da tarde de domingo, hora do fecho das urnas. É preciso ganhar seja como for. Não lhes importa que um cidadão pense amanhã que, em resumo, no dia 11 de Março só a ETA disse a verdade. Os outros mentiram deliberadamente ou enganados pelo governo (Aznar telefonou pessoalmente aos directores dos jornais para assegurar-lhes que o governo estava seguro que era a ETA).
Como conclusão, simpatizante ou não com a autodeterminação do País Basco, estando contra os métodos criminosos da ETA, friamente, chega-se à conclusão de que os aliados objectivos do terrorismo da ETA são a cínica política de partidos como o PP, amigo do peito de Bush, Blair, Berlusconi, Durão Barroso. Que colecção de democratas!


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