Fernanda Mateus, da Comissão Política do PCP

«Quem se opõe à despenalização do aborto não confia nas mulheres»

Isabel Araújo Branco
Na próxima quarta-feira, dia 3 de Março, será discutido na Assembleia da República um projecto-lei do PCP que visa a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, bem como outros projectos sobre a mesma problemática de outras forças políticas. Fernanda Mateus, membro da Comissão da Comissão Política do PCP, fala sobre este tema, abordando questões como o referendo e a posição da direita.
- Menos de cinco anos depois da realização do referendo, porquê agora a apresentação do projecto-lei e a realização do debate?
- Logo após as eleições legislativas de 2002, o primeiro projecto que o PCP entregou na Assembleia da República foi o da interrupção voluntária da gravidez (IVG), mostrando que continuamos profundamente empenhados nesta questão. Não abdicamos de uma luta que travamos há 21 anos, mesmo sabendo que havia uma maioria de direita no Parlamento e que havia um acordo político entre os partidos do Governo, afirmando-se como uma força de obstáculo a qualquer iniciativa de despenalização. Ainda assim, como achamos que a actual lei é injusta e desumana para as mulheres, decidimos apresentar o projecto-lei. Este é também um compromisso eleitoral do PCP.

- Quais os objectivos do projecto-lei do PCP sobre o aborto?
- Este projecto alicerça-se num conhecimento da realidade. O aborto clandestino é uma realidade. As mulheres abortam em Portugal por razões que não estão expressas na lei actual, que abrange um por cento dos aborto que são feitos. O nosso projecto procura corresponder às causas que levam as mulheres a realizar um aborto. Nós estamos a ajuizar se elas devem ou não fazer. O legislador deve criar um quadro legal em que a mulher possa fazer o aborto sem ser perseguida judicialmente.
O nosso projecto procura salvaguardar uma maternidade responsável, procurando alterar o actual Código Penal por considerarmos que está desajustado da realidade e por ignorar um conjunto de resoluções e recomendações internacionais – da ONU ao Parlamento Europeu – que têm recomendado o fim da perseguição judicial e criar condições para o aborto seguro.

- Depois de algumas figuras do PSD e da JSD terem defendido a despenalização do aborto e de imediatamente terem sido silenciadas, como se prevê que a direita aja no dia 3?
- O PSD e o CDS-PP fizeram um acordo de governo que visa objectivamente impedir qualquer avanço ao nível da despenalização do aborto e criar maiores dificuldades ao cumprimento dos direitos sexuais e reprodutivos, ao nível do planeamento familiar e da educação sexual. No mínimo, é confrangedor que o ministro Bagão Felix afirme que o aborto deve ser crime mas que as mulheres devem expiar a sua culpa fazendo trabalho cívico. Ou que a secretária de Estado Mariana Cascais faça um grande ataque à educação sexual. O Governo está empenhado em avançar com concepções obscurantistas. Acompanhamos com preocupação o facto de organizações de direita fazerem cruzadas contra a contracepção. Veja-se a campanha de desinformação dos que afirmam que a pílula do dia seguinte é abortiva, quando a pílula abortiva não é comercializada em Portugal.

- A direita manterá essa posição?
- Sempre que há processos como o da Maia e o de Aveiro, a direita fica embaraçada porque tem consciência de que as mulheres abortam independentemente da idade, da classe social, das concepções filosófico-religiosas ou do quadrante político em que se encontram. Procura-se esconder que há diferentes sensibilidades em forças como o PSD. Não nos esqueçamos que a lei de 1998 foi aprovada por três deputados do PSD. As direcções dos partidos de direita ensaiam soluções que aos olhos da opinião pública pareçam um recuo em relação à posição de fundo que de facto têm.
As iniciativas do PCP obrigaram a direita enfrentar a sua posição, mas ninguém acredita que as direcções do PSD e do CDS-PP recuem na despenalização do aborto. Sempre soubemos que a maioria de direita se oporia a qualquer iniciativa, seja por via de um projecto-lei ou de uma proposta de realização de um referendo. Isto não é uma questão que possa voltar a ser adiada. Tem havido várias oportunidades perdidas. Uma lei que despenalize o aborto não vai obrigar nenhuma mulher a abortar, mas vai permitir que a mulher possa decidir de acordo com a sua consciência e a sua autonomia, sem correr o risco de ser perseguida. Quem se opõe à despenalização do aborto não confia nas mulheres.

- Porque é que o PCP não se associou à recolha de assinaturas para a realização de um novo referendo?
- Em primeiro lugar, o PCP não foi convidado, mas o dado central é que achamos que é fundamental a unidade no campo democrático e progressista em torno da luta da despenalização do aborto para enfrentar esta nova fase da luta. Logo após o referendo de 1998, o PCP disse que esta é uma questão que não podia ficar esquecida e que continuaríamos a dar prioridade ao debate na AR. Foi nesse sentido que apresentámos um projecto de lei. Não nos associámos a essa iniciativa porque consideramos que a prioridade é afirmar a legitimidade da AR relativamente a esta matéria.
Não excluindo travar nenhuma batalha, incluindo a do referendo, consideramos que não devem ser aqueles que sempre aceitaram a legitimidade da AR e que criticaram a realização do referendo em 1998 que dessem de bandeja o referendo àqueles que sempre o defenderam. Esta é uma opção que mantém a coerência e que procura criar as melhores condições para o êxito desta luta.

- Estando a direita no poder, é pouco provável que o projecto do PCP seja aprovado. E o referendo?
- Devemos confrontar a direita com a sua posição obscurantista, cruel e desumana. O que determina as suas oscilações e o seu recuo é a criação de um movimento que mostre que esta situação tem de acabar. Cada força política não deve abdicar do meio que acha ser mais adequado. Qualquer partido tem legitimidade para considerar, ao contrário do que defendeu ontem, que o referendo é a melhor forma de resolver a questão. Mas lembramos que a despenalização do aborto não pode ser feita apenas por referendo.
Provavelmente, no dia 3, tanto será chumbado o projecto do PCP como as iniciativas que visam a realização do referendo. Não se pode dizer que uma forma de luta é mais eficaz do que outra. Percebemos a aspiração de muitas pessoas que, ao subscrever o pedido de referendo, quiseram contribuir para que alguma coisa fosse feita, até porque foi criada a ilusão de que era suficiente haver 75 mil assinaturas para que a maioria fosse obrigada a realizar um referendo.

- Se houver um novo referendo, qual será a posição do PCP?
- O PCP não exclui travar nenhuma batalha, não tem nenhum tabu em relação ao referendo. Se houver referendo, naturalmente que estaremos na primeira linha dessa batalha.

- O PCP apela às pessoas para que se associem ao debate. Como podem fazer isso?
- O debate de quarta-feira é muito importante, mesmo sabendo que provavelmente nenhuma das propostas será aprovada. Nem sempre ganhámos as batalhas, mas devemos estar presentes, activos e assinalar que este é um problema que não pode ser ignorado. As pessoas podem dirigir cartas à Assembleia da República ou podem assistir ao debate, a partir das 15 horas ou mais tarde, até para ficarem mais informadas sobre as opiniões das diferentes forças políticas.

- Qual o significado da absolvição pelo Tribunal de Aveiro de todos os acusados de prática de aborto?
- Não houve provas que culpabilizassem os envolvidos. Não foram provado os crimes de que foram acusados, mas esta absolvição é muito importante. Esta luta não precisa de condenados. Estivemos presentes no tribunal, não para pressionar a justiça – o nosso caminho tem sido pressionar o legislador –, mas para mostrar que aquelas mulheres não estavam sós naquele momento.

- E do indulto presidencial à enfermeira do processo da Maia?
- Foi um indulto pequeno, de seis meses. Valorizamos o indulto e expressámo-lo publicamente na ocasião.

As propostas do PCP

O projecto-lei do PCP que estará em discussão na Assembleia da República na próxima quarta-feira inclui:

• a despenalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) nas primeiras 12 semanas a pedido da mulher, para garantir o direito a uma maternidade consciente e responsável;
• nos casos de mãe toxicodependente, o alargamento do período até às 16 semanas;
• no caso de o nascituro estar afectado pelo HIV, o aborto poderá ser realizado até às 24 semanas. Esta situação está compreendida na actual lei, mas entendeu-se ser necessário explicitar dadas algumas resistências ainda existentes relativamente à aplicação da lei nestes casos;
• o alargamento de 12 para 16 semanas do prazo, nos casos em que a IVG se mostre indicada para evitar perigo de morte ou de grave lesão para o corpo ou saúde física da mulher grávida;
• o alargamento para as 24 semanas, no caso de vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, quando menores de 16 anos ou incapazes por anomalia psíquica;
• a obrigação de organização dos serviços hospitalares, nomeadamente dos distritais, por forma a que respondam às solicitações de prática da IVG;
• a impossibilidade de obstruir o recurso à IVG, através da previsão da obrigação de encaminhar a mulher grávida para outro médico não objector de consciência ou para outro estabelecimento hospitalar que disponha das condições necessárias à prática da IVG;
• a despenalização da conduta da mulher que recorra à IVG fora dos prazos e das condições estabelecidas na lei;
• obrigação para a instituição onde se tiver efectuado a IVG de providenciar que a mulher, no prazo máximo de sete dias, tenha acesso a uma consulta de planeamento familiar.