Sinal +

Correia da Fonseca
Não espantará decerto que o Telejornal, isto é, o principal serviço noticioso da RTP 1, não me maravilhe. Por razões várias, naturalmente, entre as quais avultam duas: o avacalhamento noticioso a que é costume chamar tabloidização e que já contamina os noticiários do primeiro canal público e a quota-parte que lhe cabe naquilo que o dr. Augusto Santos Silva designou por «sub-representação do PCP» na comunicação social. Convém talvez acentuar que os noticiários dos canais abertos das estações privadas não são menos tabloidizados nem discriminam menos o PCP. Porém, sinto-me no direito, e mesmo no dever, de atribuir mais responsabilidades à estação de capitais públicos, que é de todos os portugueses e não de um limitado magote de sujeitos. Nem do senhor ministro Sarmento, ao contrário do que muitas vezes ele parece supor.
No passado sábado, porém, aconteceu-me qualquer coisa de extraordinário ou que assim me pareceu: terminado o Telejornal, quase fiquei com vontade de aplaudir. Dir-se-á talvez que afinal sou muito fácil de contentar, e na verdade lá tinha aparecido o dr. Santana mais a sua já habitual rábula, mais o dr. Durão a fazer no Algarve propaganda pré-eleitoral com a RTP a aparar-lhe o golpe. Mas eu tinha feito como toda a agente, não liguei, tornei-me malhadiço. Também a apareceu a senhora ministra do Ensino Superior a sustentar uma coisa que me pareceu surpreendente: que ninguém deixa de frequentar uma universidade por falta de dinheiro. Foi, reconheço, um mau momento do Telejornal e um momento péssimo da ministra que deu inquietante sinal de não saber em que país vive. Mas eu pensei que neste país de gente pobre, como as estatísticas confirmam, aquele audacioso disparate era de tal forma evidente que funcionava contra a própria ministra. Por isso perdoei a notícia, não tanto a ministra.
O primeiro momento que funcionou a favor do balanço final positivo que acabei por fazer daquele Telejornal veio do Algarve, mas não tinha a ver com a excursão Durão/Santana. Era uma breve reportagem que vinha mostrar, mais uma vez, como os diversos poderes desprezam profundamente não apenas os interesses mas também a própria vida dos cidadãos seus efectivamente súbditos, e como os desprezam mais fácil e soberanamente se se trata de velhos e/ou deficientes. O caso passa-se algures na Estrada 125, no Algarve, onde uma mal construída passagem aérea para peões, sobre uma via de trânsito intensíssimo e perigoso, obriga a que pelo menos deficientes e velhos, se não muita outra gente, arrisque a vida na travessia. Já por lá houve mortes, como era inevitável, e quanto a correcções da situação por ora só há promessas. Mas o caso pareceu-me ser involuntariamente simbólico de um país onde aos velhos e deficientes não cabe mais que a obrigação de morrerem, e depressinha, para não empatarem os que são jovens e saudáveis – por enquanto.

Talvez um equívoco

Pouco depois surgiu uma outra breve reportagem, esta motivada pela publicação de um livro sobre a prostituição em Portugal. Não li o livro, não sei nada da autora (sei, contudo, que se chama Alexandra Oliveira, o que me sinto obrigado a registar aqui), mas pareceu-me que o tom da reportagem/notícia assumia um tom diferente do que é habitual quando o tema é a prostituição: havia ali um entendimento das coisas, uma sugestão der aprofundamento, até um sugerido respeito pelas pessoas, que de todo se afastava do habitual aproveitamento mórbido que é de regra. E ainda eu não me refizera do agrado quando surgiu no Telejornal um outro tema: o da introdução dos chamados cuidados paliativos nos hospitais portugueses. São Apenas uns quatro os hospitais que mantêm sectores dedicados a minorar significativamente a dor nas fases terminais de doenças incuráveis, designadamente o cancro. Isto significa que a regra, crudelíssima e hipócrita, é o abandono pelo menos parcial dos doentes à uma final de vida que muitas vezes é atroz: recusa-se-lhe o direito à eutanásia mas também se lhe recusa, por inexistência em meio hospitalar, o tratamento que os impediria de ardente e desesperadamente a desejarem. Aliás, talvez o exercício da medicina esteja ainda mergulhado num equívoco que conduz a situações extremamente cruéis: ao médico é dito que o seu dever supremo é o de salvar vidas (como se, a prazo e em definitivo, alguma vida pudesse ser «salva»), quando talvez devesse ser-lhe dito que o seu dever primeiro será combater a dor, o sofrimento, quando terríveis. Mas admito que este pode não ser tema para esta coluna. Onde ficará lindamente, isso sim, a confissão deu que num certo sábado fiquei decidido a atribuir sinal + a um Telejornal. O que nõ é coisa pouca.


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