
- Nº 1572 (2004/01/15)
Pois desenganem-se
Argumentos
«Pois desenganem-se…» Lá estou eu outra vez na onda da mesma lenga-lenga. Mas é que acho não ter ainda a lição sido agarrada da forma apropriada pelas nossas médias opiniões, quanto mais pelas opiniões «líderes» das nossas ocidentais sociedades. Ou mesmo, tendo-o sido, acho ser conveniente ir amadurecendo, sendo aprofundada, retirar dela consequências para a direcção da nossa vida de todos os dias. E, na minha presunção de ser um dono desta verdade, ou pelo menos na minha preocupação de a estar a ver, por quaisquer razões de posicionamento, repito ainda, e agora de forma mais categórica: «Desenganem-se em definitivo.»
Mas do que está este a falar? - já se perguntará o leitor que não desistiu e leu o texto até aqui. Do que estou a falar? De mais um sinal, de mais um sintoma, do que se vai mudando neste Mundo. Pequeno e não muito relevante sinal? Julguem-no.
O sinal a que estou a aludir é o dado pelo crescimento da banda larga. Pois é. Dizia um texto que li há pouco terem os utentes do acesso de banda larga à Internet atingido os 100 milhões e que a China deverá estar a ser o maior mercado do mundo nesta área (tecnologia, ferramenta de conhecimento, etc.). Pronta a ultrapassar a Coreia do Sul, o tão analisado e invejado líder.
A última vez que me referi a números, em termos de banda larga, foi há muito pouco, a propósito da façanha de duplicação de utentes de banda larga na União Europeia entre finais de 2002 e finais de 2003, de 10 para 20 milhões. Este crescimento, a ser considerado, como uma arauto da recuperação do sector das telecomunicações num mundo em crise económica. E, se utilizarmos, o índice mais falado, o das acções, é só olhar o que se tem vindo a passar nesta viragem de 2003 para 2004. Poderá, em boa realidade, não significar muito. Mas, para os analistas e escribas dos media, já lhes está a servir de sinal relevante.
Voltemos ao «desenganem-se». Então, desenganem-se de quê? E quem tem que desenganar-se?
Desenganem-se, quero dizer, desenganem-se de continuarem a supor ser a China uma mera e enorme oficina cheia quase apenas de operários - operários, aqui no texto, num sentido do aperta sempre o mesmo parafuso e de serem descartáveis -, recém chegados às mega-urbes, a ganharem salários de miséria e sem direitos de qualquer espécie, em concorrência desleal com os seus companheiros ocidentais - estes cheios de direitos e com salários elevados. Desenganem-se também os que, estendendo, é certo, este cenário, referem que a estes trabalhadores se deve juntar ainda a mão-de-obra imensa do infindável interior chinês, que complementa assim os seus rendimentos, os quais ainda são menores que os salários dos que trabalham nas zonas industrializadas da faixa costeira da China, através de subcontratação de trabalho caseiro nas horas que deveriam ser de descanso e de lazer. Desenganem-se ainda os que vêem a Internet na China como uma quase impossibilidade, devido à censura e apertadas regras de acesso à informação.
É que não digo que isto tudo não seja verdade. Mas o que também é verdade é que, se quisermos adoptar o conceito ambíguo de classe média, o certo é poder já hoje contar-se no interior do território da R.P. da China (mesmo sem contar com Hong Kong, e de Macau nem falamos por incluir, em comparação, uma exígua população) com cerca de 300 milhões, isto é, o maior contingente de classe média do Mundo!
Pois relembremos (hoje estou nesta dos «pois», e não há meio de libertar-me!): no princípio dos anos 90 a China tinha menos de 1% da população com telefone; na segunda metade dos anos 90, já estava a acrescentar 15 milhões de linhas fixas por ano - ou seja, mais de 1 ponto percentual por ano - e já tinha arrancado a toda a velocidade com os telemóveis. Pouco depois transformava-se no maior mercado de telemóvel do mundo, No fim de 2002, já eram mais de 30 milhões os utentes da Internet na China, tantos quantos os existentes em todo o mundo pouco antes de ter terminado o século XX.
E agora, ainda 2004 vai entrando, e já a China está na dianteira da banda larga? Convenhamos que é um facto relevante. Logo a banda larga que foi erigida como um desígnio estratégico nas zonas mais avançadas do mundo. Será que a China também já é uma dessas zonas avançadas? Sobrará ainda espaço suficiente para continuarmos a argumentar - talvez para não querer ver um facto que dói - que os chineses são tantos que os números serão sempre surpreendentes em termos absolutos, mas em termos relativos do próprio país não representarão nada por aí além? Pois desenganem-se…
Francisco Silva