Portugal é o país da UE com mais pobres

Um flagelo com raiz nas desigualdades

Gustavo Carneiro
Exceptuando as campanhas de «solidariedade», tão em voga na quadra natalícia que se aproxima, e a divulgação mediática de obras caritativas de uma ou outra personalidade ou governante, raras vezes se seriamente o problema da pobreza e da exclusão social. Os preconceitos e estigmatizações que sobre os pobres se levantam – patrocinados pelos que destes se servem para tirar dividendos políticos e de influência – fazem muitas vezes com que seja difícil a alguém reconhecer que vive em situação de carência, mais ou menos extrema. Mas os pobres existem, e são muitos.

Muitos dos pobres da UE têm emprego, mas recebem baixos salários

Os números divulgados pela União Europeia chocam: segundo estatísticas oficiais, existiam em Portugal, em 1999, dois milhões e trezentas mil pessoas em risco de pobreza. Ou seja, 23 por cento da população vivia com menos de 60 por cento do rendimento médio nacional (é este o conceito de pobreza na UE). Só para os mais distraídos é que estes números podem surpreender, já que Portugal lidera a tabela dos 15 países da UE no que respeita à maior disparidade de rendimentos, em que o fosso entre os 10 por cento mais ricos e os 10 por cento mais pobres é maior, bem como a dos mais baixos salários e pensões.
É destas contradições e destas desigualdades que nasce a pobreza. Mas esta é «apenas» uma das concepções do problema, aquela que considera que a sua erradicação requer uma alteração profunda na forma de organização das sociedades, nomeadamente da portuguesa, onde este problema se faz sentir com tanta intensidade. Há outras.
Baseada na persistência da pobreza no País, que faz desta um fenómeno estrutural no contexto nacional, a direita (mais ou menos assumida, partidária ou «apenas» ideológica) propaga concepções da pobreza e da exclusão que as vêem como inevitáveis e irresolúveis. E como um fenómeno cujas causas residirão nas características específicas de alguns que, devido a estas, se vêem irremediavelmente empurrados para a situação de pobreza. Atrás destas concepções surgem a caridade e o assistencialismo, que dão prestígio e influência a alguns, mas que não consta que tenham alguma vez conseguido acabar com a pobreza.
«As principais fontes da pobreza no nosso País situam-se nas baixas reformas, no desemprego e nos baixos salários», afirmou Carlos Carvalhas no debate que o PCP promoveu no passado dia 12 em Lisboa, sob o lema «Pobreza e Exclusão Social: realidades e respostas». Segundo o secretário-geral do PCP, há «dois milhões de pobres num país que apresenta as mais altas taxas de lucro do capital financeiro da União Europeia e que ao mesmo tempo tem o mais baixo salário mínimo».
«Nós bem gostaríamos, dirão eles, de aumentar as reformas e os salários, mas, outra vez o mas, não é possível», afirmou Carlos Carvalhas, que rejeita o argumento do Governo de falta de dinheiro para as políticas sociais. Segundo Carvalhas, «há dinheiro para fechar os olhos à evasão fiscal feita nos off-shores e no off-shore da Madeira, há dinheiro para dar largos milhões de euros em benefícios fiscais às actividades financeiras e especulativas, há dinheiro para dar ao Grupo Mello através do Hospital Amadora-Sintra».
Na mesma linha, Edgar Silva, do Comité Central lançou a que seria a questão dominante de toda a discussão: «a pobreza tem as suas raízes profundas na forma como a sociedade está organizada.» Prosseguiu o membro do Comité Central, afirmando a sua convicção de que as causas da pobreza se encontram na sociedade e que são necessárias mudanças sociais para a erradicar. As causas da pobreza, considera, «radicam nos “não-pobres” e que, consequentemente, é sobre estes que deve incidir uma acção de fundo».
Edgar Silva não estranha os dados sobre a pobreza em Portugal. Na sua opinião, conhecendo o sistema de pensões, o mercado de trabalho e o carácter precário de algumas actividades por conta de outrem, é «forçoso que haja pobreza».

Uma profunda questão ideológica

Considerando a pobreza como «toda e qualquer situação de privação resultante da carência de recursos, Edgar Silva, na esteira da primeira intervenção, de Fernanda Mateus, da Comissão Política, rejeitou as visões preconceituosas que reduzem a pobreza às suas expressões mais radicais. Para alguns, pobre é o incapacitado para o trabalho, o idoso ou mesmo o sem-abrigo. A estes opor-se-iam outros, supostamente a viver imerecidamente de ajudas, e que, se trabalhassem, deixariam a pobreza. Esta concepção, na opinião do membro do Comité Central, é uma ideia que interessa propagar por parte dos defensores da caridade e do assistencialismo, normalmente acérrimos inimigos de mudanças sociais profundas. «Pode haver pobreza sem exclusão social», afirmou. Até porque grande parte dos pobres portugueses trabalham.
Para o presidente do Grupo Parlamentar comunista, Bernardino Soares, estas concepções escondem interesses maiores. O deputado afirma que as ideias de responsabilização dos pobres pela pobreza servem para procurar justificar medidas como as alterações aos subsídios de desemprego e de doença. Pretende-se passar a ideia de que «estes subsídios e apoios são a razão de uma imensa fraude e dão cobertura a uma série de gente», afirmou.
Para Ilda Figueiredo, deputada no Parlamento Europeu, a pobreza constitui uma violação de direitos humanos fundamentais: «quando há pobreza ou não está a ser garantido o direito ao emprego ou, se o está, não está o direito a um salário justo e digno». A deputada comunista criticou os ataques aos serviços públicos – ou «liberalizações», como eufemisticamente são conhecidos – levados a cabo nos países da União Europeia. Estes, «não só estão a pôr em causa serviços de qualidade – questão essencial para o cumprimentos de direitos humanos, e portanto para o combate à pobreza –, como estão a agravar o desemprego, um outro contributo para a pobreza e a exclusão».

Campeões da vergonha

Segundo as estatísticas da agência europeia (Eurostat), Portugal segue à frente dos 15 países que actualmente constituem a União Europeia no que à pobreza e exclusão social diz respeito. Os dados, de 1999 (os últimos disponíveis), estimam que no País existissem dois milhões e trezentas mil pessoas em risco de pobreza, ou seja, com rendimentos inferiores a 60 por cento do rendimento médio nacional.
Ilda Figueiredo, eurodeputada do PCP, alerta para o facto de em 1999 a economia se encontrar em crescimento, o que não se passa actualmente. «De certeza que se forem utilizados hoje os critérios de 1999 vamos ter em Portugal muito mais de 23 por cento de pessoas nesta situação», afirma. «Basta ver como tem crescido o desemprego, como não têm crescido os salários reais», acrescenta. A deputada lembra ainda que os critérios utilizados têm como referência o rendimento nacional, e não o europeu. «Quando se diz que em Portugal a taxa das pessoas que tendem para a pobreza é de 23 por cento, estamos a falar dos que têm menos de 60 por cento do rendimento médio do País, o que corresponde a cerca de 275 euros», recorda. Já em Luxemburgo, por exemplo, estes 60 por cento são algo como 600 euros. Se os critérios fossem uniformes para toda a UE, quantos seriam os pobres em Portugal? E Portugal é também o primeiro quando se refere a ineficácia das prestações sociais, que são as que menos influência têm na resolução de situações de pobreza.
Mas não é só na pobreza (directamente considerada) que Portugal «lidera» o ranking europeu. Ligados a ela surgem, inevitavelmente, os salários. E Portugal é o primeiro país no que respeita aos baixos salários. O salário mínimo é o mais baixo da Europa dos 15, tal como o salário médio (887,5 euros). Em Espanha, este caminha para o dobro do praticado em Portugal, enquanto na Alemanha está mesmo perto do triplo. E o custo de vida, ao contrário do que possa parecer, é mais elevado, em muitos casos em termos absolutos. E isto abrange todo o tipo de produtos, mesmo os de primeira necessidade.
Na fraca afectação de recursos para a protecção social, Portugal está nos primeiros quatro.
Também no que respeita à desigualdade na repartição dos rendimentos, Portugal é o primeiro da União Europeia. O mesmo acontece quanto às disparidades salariais entre homens e mulheres. Outros indicadores em que Portugal lidera, e destacado, são, por exemplo, a taxa de analfabetismo, o baixo nível de instrução e o abandono escolar precoce, todas elas causas e consequências da pobreza e da exclusão.

E o Governo a ajudar…

Se não se pode acusar o actual Governo pela existência de tantos pobres em Portugal, pois o problema vem de trás, não se pode esquecer o seu contributo para o agravamento da pobreza e da exclusão social no País. Em diversas medidas que tomou e prevê tomar – quase sempre a coberto de «grandes causas nacionais», como a produtividade ou o combate ao défice público – o Governo do PSD/PP agrava as condições de vida da grande maioria dos portugueses.
Uma primeira – e importante – peça deste agravamento é o Código de Trabalho. Com esta legislação, o Governo pretende, entre outras coisas, a diminuição do tempo de trabalho nocturno pago; a alteração do conceito de retribuição para cálculo das prestações complementares e acessórias, com fortes consequências no cálculo de diversos subsídios e pensões; agravar sanções pecuniárias e alterar os pressupostos de pagamento do trabalho extraordinário, para além de muitos outros graves artigos, com reflexos indirectos no rendimento do trabalhador.
Mas há mais. No momento em que, graças à política prosseguida, o País conta com meio milhão de desempregados (segundo números oficiais), o Governo decide reduzir o subsídio de desemprego. O subsídio de doença teve o mesmo destino. Quanto ao Rendimento Mínimo Garantido, foi substituído pelo Rendimento Social de Inserção, de acesso muito mais restrito. A substituição foi o corolário de toda uma campanha da direita contra aquele subsídio, que considerava um incentivo à inacção. Mas a verdade é que a média do seu valor era de 9 mil escudos (em moeda antiga) e era, para muitos, complemento de salário ou reforma.

A crise na primeira pessoa

A pobreza alastra em Portugal. Esta realidade, visível aliás diariamente, é particularmente sentida por quem convive de mais de perto com as situações mais difíceis. No debate promovido pelo PCP estiveram muitas dessas pessoas, entre dirigentes de diversas associações e funcionários dos serviços do Estado e de instituições particulares de solidariedade social (IPSS).
Em várias intervenções, transpareceu o agravamento das condições de vida das populações mais desfavorecidas. «Aumentaram muito os pedidos de revisão das mensalidades das crianças», afirmou a responsável por uma IPSS. A mesma oradora referiu que foi reforçado o envio de alimentação para os jantares das crianças, em suas casas. «Muitos meninos tomam na instituição a sua única refeição quente do dia», recordou.
Maria da Luz, assistente social, conta as famílias monoparentais são uma nova forma de pobreza, com grandes dificuldades na própria educação dos filhos. As rendas de casa são elevadas (para além dos baixos salários) e a acção social escolar, no ensino secundário, abrange muito poucos alunos (só quem receba menos de 175 euros per capita por mês).
Os reformados constituem uma grande fatia dos pobres portugueses. Maria Antunes explicou porquê. Esta reformada viu ser-lhe retirado o apoio que a Misericórdia lhe dava, e que utilizava para comprar medicamentos. Agora, os 200 euros mensais de reforma terão de chegar para tudo.