
- Nº 1561 (2003/10/30)
O Ministro e o negócio
Argumentos
A gente sabe que o Governo faz coisas que não devia fazer, os seus próprios apoiantes têm disso consciência, mas todos esperam que o mesmíssimo Governo que assim obedece à sua mais profunda vocação, para não dizer que às instruções dos que nele mandam, procure disfarçar essas práticas. Assim, foi com alguma surpresa que, no passado domingo, ia eu a passar quase apenas de raspão no «Negócios da Semana», programa da SIC, quando dei de caras com um rosto conhecido de qualquer lado. Era nem mais nem menos que o dr. Luís Filipe Pereira, ministro da Saúde. Fiquei para ouvi-lo, naturalmente, e o que ouvi veio confirmar amplamente o que eu já pensava do senhor ministro e que, de resto, já podia entender-se a partir do seu currículo de prestigiado gestor sectorial numa grande empresa: o dr. Luís Filipe Pereira é, como diria o Herman José, danado para o negócio. De onde a consequente conclusão que se impõe em face da convergência dos seus feitos no passado com os seus feitos no presente: foi chamado para o Governo e para a pasta que lhe foi entregue a fim de converter a saúde dos portugueses, ou, mais exactamente, as suas doenças, em objectivo negocial.
Salvo melhor opinião e com o devido respeito, é preciso muita lata para que um ministro da Saúde aceda a ser entrevistado acerca da sua actividade ministerial num programa intitulado «Negócios da Semana» e que, de resto, sempre tem sabido merecer o âmbito de interesses que o título sugere. Bem se sabe que não vão os tempos para grandes pudores, que o que mais se aprecia hoje é o desembaraço pragmático da acção, mas ainda assim, nisto como em tudo, é costume guardar limites e conveniências. É justo registar, contudo, que o senhor ministro não deixou completamente de fazer saber que tinha em grande preocupação o funcionamento do sistema de Saúde que lhe cabe tutelar. Mas quando aqui escrevo «funcionamento do sistema» quero aludir a isso mesmo, não propriamente à saúde dos cidadãos para cuja salvaguarda o sistema deve funcionar. Esta parece uma distinção meramente académica, quase gongórica, mas não é, pois tudo indica que o que interessa sobremaneira ao dr. Luís Filipe Pereira é o funcionamento e a sua entrega a quem melhor lhe pareça. Quanto á saúde dos portugueses, é claro que se resultar defendida, tanto melhor, mas não pareceu que para o senhor ministro esse seja exactamente um aspecto prioritário.
Já dá lucros!
Aliás, como é sabido, os que em Portugal estavam doentes, coitados, e por estarem doentes recorriam ao Serviço Nacional de Saúde, estão globalmente (santa palavra!) muito melhor: já não são doentes, agora são clientes, pelos menos nas instituições hospitalares ou outras que foram entregues, finalmente, à sábia gestão privada. Mas não nos equivoquemos, já não estamos nos ingénuos tempos em que uma regra fundamental dizia que «o cliente tem sempre razão». Pelo contrário, agora, em princípio, o cliente não tem, pelo menos, toda a razão, e porque é assim começa por pagar, pois presume-se desde logo que está possesso do incontrolável apetite de andar por hospitais e filas de espera, pelo que é preciso moderá-lo mediante o pagamento de uma taxa cujo valor só é irrelevante para quem não tem uma reforma também ela moderada ou um salário de apertar cintos. Por outro lado, como bem sabe quem frequenta o meio quer na qualidade de cliente quer na qualidade de médico, enfermeiro ou em outra qualquer função, a gestão privada acabou com o tempo das vacas gordas, isto é, dos materiais abundantes ou quase, da reparação breve da aparelhagem avariada, da pronta disponibilidade de todos os medicamentos necessários, do internamento de doentes por todo o tempo em que o internamento é conveniente. E faço esta breve exemplificação a partir de situações muito concretas, não sou bruxo para me deitar a adivinhar.
Em directa consequência da nova ordem gestionária introduzida em hospitais e afins, crescem os clamores por parte dos doentes mal atendidos e/ou insuficientemente tratados, perdão, dos clientes excessivamente exigentes. Mas o senhor ministro não parece importar-se ou sequer dar por isso. Bem pelo contrário, está contentinho, graças a nenhum deus mas a si próprio, e ele próprio revelou a fonte da sua alegria: calcule-se que já há hospitais a dar lucro, isto é, com superavit, que é o pseudónimo do lucro em economês. E não nos escandalizemos com esta notícia de a doença estar a dar lucro (à gestão privada, entende-se): decerto para isto mesmo é que o dr. Luís Filipe foi escolhido para abrir balcão de secos & molhados, isto é, de doentes & acidentados, como legítimo ramo de negócio. Quanto aos eventuais descontentes, não se liga. Se calhar, são todos comunistas.
Correia da Fonseca