
- Nº 1546 (2003/07/17)
Gostámos muito
Opinião
Não é que a coisa devesse precisar de ser provada, mas aqui estamos hoje a fazer uma nova demonstração de que somos capazes de ser isentos em relação ao Governo que infelizmente temos e à política que infelizmente sofremos, a tal ponto que, como a seguir se verá, até somos capazes de elogiar e gostar de coisas que o Governo de Durão Barroso diz ou anuncia.
Por isso, a respeito da tão propagandeada «reforma da Administração Pública», não temos a mais pequena hesitação em afirmar que gostámos muito de ouvir Durão Barroso afirmar que «a modernização administrativa» tem de ser orientada por «três ideias-força», a saber «a melhoria da qualidade dos serviços prestados aos cidadãos», que «importa qualificar , mobilizar e dignificar os funcionários» e «construir um modelo de administração que incentive e dinamize a vitalidade e capacidade realizadora da sociedade».
Também foi com viva satisfação que ouvimos Durão Barroso proclamar que «serão difundidos valores fundamentais da função pública, designadamente sobre a ética e a deontologia do serviço público, tendo em vista assegurar rigor e profissionalismo» bem como a orientação apresentada de que «institucionalizar-se-ão e divulgar-se-ão incentivos que tenham por finalidade distinguir os resultados alcançados, em especial no domínio da melhoria da qualidade dos serviços públicos, bem como talentos, competências e espirito de missão dos funcionários».
De igual modo, íamos rebentando de contentamento quando ouvimos Durão Barroso anunciar concretamente que o governo vai «lançar um programa de melhoria da qualidade» e acções de «desburocratização, simplificação e eliminação de formalidades, poupando incómodos aos cidadãos e agentes económicos, e acelerando respostas».
Embora procurando abreviar, também não podemos deixar de assinalar que saudamos a inovadora referência ao incremento da «utilização das novas tecnologias da informação » na administração pública e que aplaudimos até nos doerem a mãos a forte, clara e determinante tese de que «a Administração não pode ser um empecilho para o cidadão; deve antes ser motor do desenvolvimento socio-cultural ao serviço do utente, do contribuinte, do empresário ou do agente a quem tem de dar resposta clara, eficaz e personalizada».
Acontece porém ...
Aqui chegados, manda a verdade que contemos que houve aqui uma lamentável confusão de papéis e apontamentos e que, por força dela, não reparámos que nem uma das frases antes citadas pertence ao discurso com que Durão Barroso recentemente apresentou a prometida «reforma da administração pública».
Mas mais e pior que isso: é que todas as afirmações citadas foram afinal extraídas dos Programas de dois Governo do PSD dirigidos por Cavaco Silva, mais exactamente os Governos formados em 1987 e em 1991.
E, portanto, se há duas semanas, neste ano da graça de 2003, o Primeiro- Ministro e líder do PSD, precisou de anunciar uma «reforma da administração pública » e uma «modernização administrativa» e de, a par de intenções e propósitos bem funestos, repetir toda uma série de boas palavras já debitadas por Governos do seu partido há 12 e 16 anos, isso só pode querer dizer que esses governos não cumpriram o que então prometeram, porventura com encenações mediáticas não inferiores à agora usada.
Entendamo-nos porém sobre o sentido último da «maldade» que esta crónica representa. Ela não significa, com efeito, que se possa descansar com a ideia de que tudo não voltará a passar de «conversa fiada» já que devemos é estar prevenidos que isso se aplicará quando muito às «boas palavras»,mas não quanto aos propósitos mais devastadores e desfiguradores da administração pública que o Governo PSD-CDS/PP anunciou.
Não, é claro que todo o cuidado e vigilância são poucos. O verdadeiro intuito e justificação desta «maldade» é antes lembrar que estes governantes «salvadores da pátria» que hoje desfilam e falam nas televisões como se, inocentes e imaculados, tivessem acabado de chegar agora à vida política e ao governo do país, pertencem a um partido que, em 27 anos de governos constitucionais, esteve no governo durante 18 anos.
Vitor Dias