Vida e morte do soldado Gutierrez

Correia da Fonseca
A reportagem vinha da norte-americana CBS com escala pela SIC-Notícias. Tanto quanto mo ensina a minha limitada experiência, é por essa mesma via que têm chegado as mais interessantes informações acerca dos actuais Estados Unidos da América, e por isso fiquei a seguir com atenção o que a reportagem ia contando. Assim, fiquei a saber que José António Gutierrez não era propriamente norte-americano: nascera há 23 anos num bairro miserável da Guatemala, crescera em ambientes de miséria extrema como muitos milhares de outros garotos da América Central, como eles desde sempre tivera o sonho de emigrar um dia para os Estados Unidos, único lugar conhecido onde seria possível viver uma existência sem fome. Até que, em certo momento, o sonho antigo se fez verdade embora pela única via possível, o da clandestinidade. Depois de cinco mil quilómetros percorridos de vários modos, incluindo longas caminhadas a pé, entrou enfim naquela moderna Terra da Promissão e até, ao fim de tempo e diligências, conseguiu um estatuto de legalidade, embora sempre como estrangeiro e não um estrangeiro qualquer: um “hispânico”. Esta era uma diferença importante porque, como se saberá, os hispânicos são considerados nos Estados Unidos como uma espécie de gente de segunda escolha, o que implica consequências na área do emprego e não só.

Como claramente se depreendia da reportagem, José António Gutierrez ansiava por naturalizar-se norte-americano, certo de que essa cidadania afastaria de si dificuldades e eventuais discriminações. Mas naturalizar-se não era fácil, há sempre muitos milhares de candidatos à obtenção de uma cidadania que de facto transforma qualquer sujeito, mesmo um “hispânico”, em criatura de primeira classe com privilégios inerentes. Porém, Gutierrez descobriu um caminho menos difícil e menos longo para a nacionalidade norte-americana: alistar-se nos fuzileiros do US Army. Muitos outros hispânicos, ex-imigrantes clandestinos ou não, haviam seguido esse caminho, respondendo positivamente a convites que os Estados Unidos dirigem a imigrantes em busca de integração. Obtinham assim um encurtamente significativo para a sua angústia: hispânico que se aliste nos ma­rines pode requerer mais cedo a sua naturalização e contar, obviamente, com uma mais compreensiva apreciação do seu pedido. Está-se a ver que era de aproveitar, e José António Gutierrez aproveitou.

Ne­gros e brancos po­bres

Foi assim que eu soube que para ser ma­rine norte-americano não é preciso ser norte-americano, o que me pareceu curioso. E soube também, por arrasto, que muitos outros soldados do mesmo corpo militar estão nas mesmas condições: ainda não têm como sua a bandeira pela qual se batem, mas presume-se que a virão a ter. No caso do soldado Gutierrez, a má-sorte pregou-lhe uma partida: enviado para o Iraque, os iraquianos mataram-no, Gutierrez morreu ao serviço de uma bandeira que ainda não era a sua. Diga-se, porém, que, tanto quanto a reportagem da CBS informou, Gutierrez foi para o Iraque da melhor vontade, ávido de derrubar um regime que matava mulheres e crianças. Talvez felizmente para ele, morreu antes de saber que a guerra de libertação ordenada por Bush estava a matar, por sua vez, centenas de mulheres e crianças. Malhas que este império tece...

Entretanto, e de caminho, fui sabendo pela reportagem que entre as forças militares que os Estados Unidos deslocam para o estrangeiro, designadamente em operações de risco, há uma alta percentagem de estrangeiros já naturalizados ou ainda não, o que tem a óbvia vantagem de diminuir o número de norte-americanos “puros” em risco de morte. Lembrei-me então do Vietnam, esse imenso cemitério de soldados norte-americanos. Não se falou então de “hispânico” ou equiparáveis, mas soube-se que entre as forças dos Estados Unidos estava uma percentagem de soldados negros muito superior à taxa de negros na população norte-americana. Disseram outros que não seria tanto assim: também havia entre os soldados norte-americanos muitos brancos das camadas mais pobres que haviam escolhido o exército como saída de dificuldades. E que a alta percentagem de negros residia no facto de ser muito frequente ser pobre quando se é negro nos Estados Unidos.

Agora a CBS fala-me do soldado Gutierrez que os iraquianos abateram e de muitos outros, hispânicos ou não, que se alistaram nos ma­rines e foram para o Iraque, que amanhã irão para outro lado perigoso. Também eles pobres., também eles sem futuro fácil na vida civil, também eles quase integráveis na categoria de co­loured pe­ople uma vez que não têm nada o ar de anglo-saxões. E, inevitavelmente, fico a pensar.


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