A Alemanha está em guerra
Quatro soldados da Bundeswehr morreram e três dezenas ficaram feridos quando pretendiam atingir o aeroporto de Cabul e regressar à Alemanha, após o cumprimento de mais uma missão de serviço. Nos últimos meses subiu drasticamente o número de soldados alemães mortos ou feridos na capital do Afeganistão.
Até agora, segundo a versão oficial, tais baixas ficaram sempre a dever-se a acidentes. Mas desta vez, em consequência de uma forte explosão, o autocarro em que seguiam na principal artéria de Cabul voou umas dezenas de metros. Os média e o ministro da Defesa não se cansam de sublinhar que as tropas alemãs são muito bem aceites e acarinhadas pela população afegã. Trata-se de uma justificação que nós em Portugal já conhecemos desde os tempos do fascismo e da guerra colonial. Os ocupantes procuram sempre justificar a sua permanência em território estrangeiro com argumentos de tipo paternalista como a necessidade de ajuda e protecção aos povos por eles agredidos.
Depois das desinteligências entre Bush e Schröder a propósito da invasão do Iraque e que criaram em muitos sectores a ilusão de que a República Federal ter-se-ia repentinamente transformado num Estado defensor da paz, respeitador da independência e da soberania dos povos, este incidente veio relembrar que a Alemanha está em guerra. Schröder e o seu ministro da Defesa costumam invocar «a defesa dos interesses alemães» para justificar a presença da Bundeswehr no «Híndokush». E a Siemens, que mantém em permanência escritórios e conselheiros em Cabul, acaba de concluir um contrato com o governo afegão para a modernização completa da rede electrónica de comunicações no país. Tais negócios são a expressão do reconhecimento e da generosidade com que regimes corruptos costumam premiar as potências imperialistas que lhes garantem a sobrevivência. Por isso, o ministro da Defesa, o social-democrata Peter Struck, aconselhou. Karsai a estender a sua influência a outras localidades do Afeganistão, prometendo-lhe mais apoio militar e o alargamento da presença da Bundeswehr a Herat e a outras regiões.
Uma rede telefónica e de comunicações confinada à capital afegã é um negócio muito limitado. Mas há que reconhecer que não é fácil fazer sair de Cabul os tanques e o poder de um presidente, cujos eleitores se encontram nos conselhos de administração das companhias petrolíferas do Texas e dos bancos de Frankfurt, e de um regime cujos órgãos de soberania têm as suas sedes nos bombardeiros e porta-aviões norte-americanos que navegam no Índico.
AS «novas» orientações
Numa época em que a «defesa dos direitos humanos» e as missões «humanitárias» passaram a ser um dos pretextos mais frequentes para o desencadear de guerras imperialistas e para o massacre das populações civis pelo mundo civilizado, é interessante verificar a ingenuidade com que certos sectores conotados com a esquerda embandeiram em arco com a chamada «carta dos direitos fundamentais» e com a ideia de uma «constituição» europeia. A provocação que o ministro-presidente Edmund Stoiber, acaba de lançar contra a República Checa, reclamando em Augsburgo o respeito pelos «direitos humanos» dos alemães originários dos Sudetas e invocando os exemplos da Bósnia-Herzegovina, do Kosovo e do Congo, para onde Berlim acaba de decidir o envio de mais um contigente militar, deveriam refrear mais certos entusiasmos. Tanto mais que as palavras do chefe do governo da Baviera foram freneticamente aplaudidas por quarenta mil pessoas e pelo presidente da Câmara de Augsburgo, o social-democrata Wengert. Mesmo se a «pax germânica» historicamente tem sempre originado teatros de guerra, não é provável que a democracia-cristã de Munique mande bombardear Praga. Mas isto é um exemplo do estilo de tratamento que a Alemanha, em nome «dos direitos humanos», reserva aos actuais e futuros membros da União Europeia no quadro de uma Europa federal.
Os soldados alemães vão continuar a dar a vida pela Siemens e pelos «interesses alemães» no Afeganistão. Provavelmente já estarão a morrer pela «constituição europeia», ou pela comissão de Bruxelas, quem sabe, por uma União Europeia cujas linhas mestras foram apresentadas pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de Hitler, a 9 de Setembro de 1943, nos seguintes termos: «a unificação da Europa (...) é um desenvolvimento inevitável (...), a necessidade de grandes espaços para a produção e exploração conjuntas obrigam a Europa a uma mais estreita união. A Europa tornou-se demasiado pequena (...) pela encombrante soberania. O objectivo é uma união aduaneira europeia, um mercado livre europeu (...) com a perspectiva mais longínqua de uma união monetária europeia». Como se vê, o nazismo também não temia a palavra «livre» desde que associada à Europa dos «mercados».
E para aqueles que alimentam a ilusão de que uma União Europeia federalizada e militarizada, poderia constituir uma alternativa à actual hegemonia norte-americana, basta recordar que foi a aliança com os Estados Unidos que conduziu à chamada «unificação alemã», e que possibilitou ao capitalismo germânico o retornar da trajectória interrompida em 1945 pela derrota do nazismo. O renascimento militarista, a transformação da Bundeswehr num exército de intervenção, o segundo desmantelamento da Jugoslávia, a expansão da NATO até às fronteiras da Rússia e a guerra contra a Sérvia nunca teriam sido possíveis sem a aliança com Washington.
As novas «orientações para a política de Defesa» (Verteidigunspolitischen Richtlinien) apresentadas pelo ministro Peter Struck continuam a atirar para as urtigas com o artigo 26 da Constituição da República Federal da Alemanha, o qual «proíbe guerras de agressão». Tais infracções graves da Constituição tinham-se já verificado quando da utilização do espaço aérea alemão pelos bombardeiros americanos B52 e da infraestrutura militar norte-americana existente no território alemão para agredir o Iraque.
Nas novas «orientações», a doutrina de Bush da guerra preventiva encontra-se legitimada embora com uma formulação mais subtil, ao descrever-se a Bundeswehr como «um instrumento» destinado, entre outros fins, a assegurar «a capacidade de actuação da política externa» e a «estabilidade no espaço europeu e à escala global» (n° 71), e tendo como «tarefa militar permanente» o apoio «a medidas políticas que visem a prevenção e tratamento de crises e conflitos» (n° 82).
Os objectivos da legitimação da presença e intervenção dos exércitos alemães na Europa e em qualquer parte do mundo e da militarização da política internacional, segundo a actual doutrina do Pentágono, são bem claros. Interrogado pelos jornalista, na última cimeira da NATO, sobre as suas relações com o belicista e aventureiro Rumsfeld, Struck respondeu que «o trabalho funciona maravilhosamente!».
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36 linhas
O massacre de Varvarin
A 30 de Maio de 1999, na festa de Pentecostes do calendário ortodoxo, os aviões da NATO, na sua estratégia de aterrorizar a população civil para que esta retirasse o apoio ao presidente eleito Milosevic, bombardearam a pequena aldeia sérvia de Varvarin durante a celebração religiosa, atacando uma ponte por onde passavam civis. As bombas inteligentes mataram dez pessoas, degolaram o pároco e feriram mais 47 habitantes. Uma das vítimas mortais foi a jovem de quinze anos Sanja Milenkovic que, naquele lindo dia de sol, foi atingida, com mais duas amigas, duas vezes à traição pelos aviões da NATO.
Não restam dúvidas de que a força aérea da Aliança não podia ter ignorado estar a atacar um alvo civil. O complexo militar mais próximo de Varvarin situava-se a 42 quilómetros de distância.
Um numeroso grupo de jovens alemães deslocou-se recentemente a Varvarin tendo depositado cravos vermelhos na campa e no monumento à jovem Sanja, onde se encontram fotografias suas e objectos pessoais. Com o apoio de deputados do PDS no Bundestag e de várias organizações de esquerda, as vítimas sobreviventes e os familiares das falecidas apresentaram queixa contra a Alemanha por crimes de guerra e infracção às disposições da Convenção de Genebra, que protege as populações civis. Há anos que o governo alemão recusava o processo invocando que os pilotos dos aviões eram de nacionalidade norte-americana. Mas o tribunal de Bona decidiu agora aceitar a queixa.
De facto, os aviões não foram pilotados, como há 66 anos em Guernica ou em 1941 em Belgrado, por soldados da força aérea alemã, mas Berlim tinha o direito de veto sobre os alvos escolhidos pela NATO e por isso é juridicamente responsável pelo massacre. Se a Alemanha for condenada e reconhecida como culpada, a sentença poderá abrir a possibilidade a milhares de vítimas de processarem os governos que decidem sobre a guerra e a paz, sobre a morte e a vida, na Somália, no Afeganistão, no Iraque, na Bósnia, no Kosovo ou em Belgrado. Bush, Blair, os generais norte-americanos e da NATO
serão obrigados a responder pelos massacres cometidos contra a população civil.
Depois das desinteligências entre Bush e Schröder a propósito da invasão do Iraque e que criaram em muitos sectores a ilusão de que a República Federal ter-se-ia repentinamente transformado num Estado defensor da paz, respeitador da independência e da soberania dos povos, este incidente veio relembrar que a Alemanha está em guerra. Schröder e o seu ministro da Defesa costumam invocar «a defesa dos interesses alemães» para justificar a presença da Bundeswehr no «Híndokush». E a Siemens, que mantém em permanência escritórios e conselheiros em Cabul, acaba de concluir um contrato com o governo afegão para a modernização completa da rede electrónica de comunicações no país. Tais negócios são a expressão do reconhecimento e da generosidade com que regimes corruptos costumam premiar as potências imperialistas que lhes garantem a sobrevivência. Por isso, o ministro da Defesa, o social-democrata Peter Struck, aconselhou. Karsai a estender a sua influência a outras localidades do Afeganistão, prometendo-lhe mais apoio militar e o alargamento da presença da Bundeswehr a Herat e a outras regiões.
Uma rede telefónica e de comunicações confinada à capital afegã é um negócio muito limitado. Mas há que reconhecer que não é fácil fazer sair de Cabul os tanques e o poder de um presidente, cujos eleitores se encontram nos conselhos de administração das companhias petrolíferas do Texas e dos bancos de Frankfurt, e de um regime cujos órgãos de soberania têm as suas sedes nos bombardeiros e porta-aviões norte-americanos que navegam no Índico.
AS «novas» orientações
Numa época em que a «defesa dos direitos humanos» e as missões «humanitárias» passaram a ser um dos pretextos mais frequentes para o desencadear de guerras imperialistas e para o massacre das populações civis pelo mundo civilizado, é interessante verificar a ingenuidade com que certos sectores conotados com a esquerda embandeiram em arco com a chamada «carta dos direitos fundamentais» e com a ideia de uma «constituição» europeia. A provocação que o ministro-presidente Edmund Stoiber, acaba de lançar contra a República Checa, reclamando em Augsburgo o respeito pelos «direitos humanos» dos alemães originários dos Sudetas e invocando os exemplos da Bósnia-Herzegovina, do Kosovo e do Congo, para onde Berlim acaba de decidir o envio de mais um contigente militar, deveriam refrear mais certos entusiasmos. Tanto mais que as palavras do chefe do governo da Baviera foram freneticamente aplaudidas por quarenta mil pessoas e pelo presidente da Câmara de Augsburgo, o social-democrata Wengert. Mesmo se a «pax germânica» historicamente tem sempre originado teatros de guerra, não é provável que a democracia-cristã de Munique mande bombardear Praga. Mas isto é um exemplo do estilo de tratamento que a Alemanha, em nome «dos direitos humanos», reserva aos actuais e futuros membros da União Europeia no quadro de uma Europa federal.
Os soldados alemães vão continuar a dar a vida pela Siemens e pelos «interesses alemães» no Afeganistão. Provavelmente já estarão a morrer pela «constituição europeia», ou pela comissão de Bruxelas, quem sabe, por uma União Europeia cujas linhas mestras foram apresentadas pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de Hitler, a 9 de Setembro de 1943, nos seguintes termos: «a unificação da Europa (...) é um desenvolvimento inevitável (...), a necessidade de grandes espaços para a produção e exploração conjuntas obrigam a Europa a uma mais estreita união. A Europa tornou-se demasiado pequena (...) pela encombrante soberania. O objectivo é uma união aduaneira europeia, um mercado livre europeu (...) com a perspectiva mais longínqua de uma união monetária europeia». Como se vê, o nazismo também não temia a palavra «livre» desde que associada à Europa dos «mercados».
E para aqueles que alimentam a ilusão de que uma União Europeia federalizada e militarizada, poderia constituir uma alternativa à actual hegemonia norte-americana, basta recordar que foi a aliança com os Estados Unidos que conduziu à chamada «unificação alemã», e que possibilitou ao capitalismo germânico o retornar da trajectória interrompida em 1945 pela derrota do nazismo. O renascimento militarista, a transformação da Bundeswehr num exército de intervenção, o segundo desmantelamento da Jugoslávia, a expansão da NATO até às fronteiras da Rússia e a guerra contra a Sérvia nunca teriam sido possíveis sem a aliança com Washington.
As novas «orientações para a política de Defesa» (Verteidigunspolitischen Richtlinien) apresentadas pelo ministro Peter Struck continuam a atirar para as urtigas com o artigo 26 da Constituição da República Federal da Alemanha, o qual «proíbe guerras de agressão». Tais infracções graves da Constituição tinham-se já verificado quando da utilização do espaço aérea alemão pelos bombardeiros americanos B52 e da infraestrutura militar norte-americana existente no território alemão para agredir o Iraque.
Nas novas «orientações», a doutrina de Bush da guerra preventiva encontra-se legitimada embora com uma formulação mais subtil, ao descrever-se a Bundeswehr como «um instrumento» destinado, entre outros fins, a assegurar «a capacidade de actuação da política externa» e a «estabilidade no espaço europeu e à escala global» (n° 71), e tendo como «tarefa militar permanente» o apoio «a medidas políticas que visem a prevenção e tratamento de crises e conflitos» (n° 82).
Os objectivos da legitimação da presença e intervenção dos exércitos alemães na Europa e em qualquer parte do mundo e da militarização da política internacional, segundo a actual doutrina do Pentágono, são bem claros. Interrogado pelos jornalista, na última cimeira da NATO, sobre as suas relações com o belicista e aventureiro Rumsfeld, Struck respondeu que «o trabalho funciona maravilhosamente!».
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36 linhas
O massacre de Varvarin
A 30 de Maio de 1999, na festa de Pentecostes do calendário ortodoxo, os aviões da NATO, na sua estratégia de aterrorizar a população civil para que esta retirasse o apoio ao presidente eleito Milosevic, bombardearam a pequena aldeia sérvia de Varvarin durante a celebração religiosa, atacando uma ponte por onde passavam civis. As bombas inteligentes mataram dez pessoas, degolaram o pároco e feriram mais 47 habitantes. Uma das vítimas mortais foi a jovem de quinze anos Sanja Milenkovic que, naquele lindo dia de sol, foi atingida, com mais duas amigas, duas vezes à traição pelos aviões da NATO.
Não restam dúvidas de que a força aérea da Aliança não podia ter ignorado estar a atacar um alvo civil. O complexo militar mais próximo de Varvarin situava-se a 42 quilómetros de distância.
Um numeroso grupo de jovens alemães deslocou-se recentemente a Varvarin tendo depositado cravos vermelhos na campa e no monumento à jovem Sanja, onde se encontram fotografias suas e objectos pessoais. Com o apoio de deputados do PDS no Bundestag e de várias organizações de esquerda, as vítimas sobreviventes e os familiares das falecidas apresentaram queixa contra a Alemanha por crimes de guerra e infracção às disposições da Convenção de Genebra, que protege as populações civis. Há anos que o governo alemão recusava o processo invocando que os pilotos dos aviões eram de nacionalidade norte-americana. Mas o tribunal de Bona decidiu agora aceitar a queixa.
De facto, os aviões não foram pilotados, como há 66 anos em Guernica ou em 1941 em Belgrado, por soldados da força aérea alemã, mas Berlim tinha o direito de veto sobre os alvos escolhidos pela NATO e por isso é juridicamente responsável pelo massacre. Se a Alemanha for condenada e reconhecida como culpada, a sentença poderá abrir a possibilidade a milhares de vítimas de processarem os governos que decidem sobre a guerra e a paz, sobre a morte e a vida, na Somália, no Afeganistão, no Iraque, na Bósnia, no Kosovo ou em Belgrado. Bush, Blair, os generais norte-americanos e da NATO
serão obrigados a responder pelos massacres cometidos contra a população civil.