A fúria «democratizadora» do constitucionalista Vital Moreira
Num artigo intitulado «a democracia intrapartidária» (Público, 29. 4. 03) Vital Moreira aparece a defender a obrigatoriedade da parlamentarização interna dos partidos políticos e da divisão das suas direcções em tendências e fracções, a coberto de uma pretensa exigência doutrinária e constitucional destinada a assegurar o princípio de «uma representação côngrua a cada candidatura concorrente de acordo com o seu apoio eleitoral».
Para já, se tal doutrina estivesse erigida em princípio constitucional, então a oposição teria de estar obrigatória e «côngruamente» representada no Governo, e os candidatos vencidos nas eleições para a Presidência da República teriam o direito de continuar a participar das decisões daquele órgão de soberania de acordo com o apoio eleitoral obtido. Ao argumentar-se que, em Portugal, os partidos detêm (quase) o monopólio da representação política, pretende-se confundir propositadamente o Estado com os partidos e transpor para a realidade portuguesa a doutrina constitucional alemã, numa demonstração de ignorância total das circunstâncias históricas em que surgiram os respectivos regimes constitucionais e, o que é ainda mais grave, ocultando que a Alemanha possui um dos regimes parlamentares mais repressivos da Europa.
No regime constitucional alemão, o parlamento é de facto o único centro de legitimação do poder político, não só do legislativo, do governo e dos tribunais mas, inclusive, do presidente da República, o qual ë eleito por um colégio de deputados e mandatários dos partidos representados no Bundestag, além de uma representação dos Estados federados. Em Portugal existe um maior equilíbrio entre os órgãos de soberania e o processo da sua legitimação. Além da Assembleia da República, não só o Presidente da República é eleito pelo sufrágio universal como detém competências muito superiores às do seu homólogo alemão.
Na Alemanha, os comentadores do texto constitucional costumam justificar a concentração de poderes no parlamento invocando razões históricas, tais como o perigo de ressurgimento de um novo «Führer» e o facto de uma grande parte dos membros dos partidos que assumiram o poder, a partir de 1945, terem militado no partido de Hitler. De facto, nada mais do que quatro presidentes da República Federal da Alemanha foram antigos membros do partido nazi. Por coincidência, ao último deles, o jurista Karl Karsten, foi-lhe atribuído, já depois do 25 de Abril, o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Coimbra. Em Portugal, mesmo se foi permitido a um antigo membro de um governo fascista, Veiga Simão, assumir a chefia do Ministério da Defesa, a história da libertação do fascismo e da implantação das liberdades democráticas é bem diferente da alemã. A própria Constituição, pela sua importância e pelas consequências que daí necessariamente resultam para a nossa doutrina constitucional, consagra logo na abertura do preâmbulo essa especificidade do nosso processo de libertação: «A 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas, coroando a longa resistência do povo português e interpretando os seus sentimentos profundos, derrubou o regime fascista». O quadro constitucional português não pode pois ignorar o facto de o povo português possuir uma tradição de luta antifascista e se ter libertado da ditadura pelos seus próprios meios sem a intervenção de exércitos estrangeiros, razão pela qual Portugal, em matéria de democracia, não ter lições a receber da Alemanha. Importar como princípios democráticos «únicos» e «universais» medidas que visam limitar a liberdade e autonomia dos partidos políticos é um absurdo e, na situação concreta de uma União Europeia cada vez germanizada, constitui uma ameaça real ás «liberdades políticas» e mais um passo premeditado para a liquidação da independência e da soberania nacionais, abafando o que há de específico na democracia portuguesa. As limitações que se pretende impor à liberdade estatutária do PCP - partido que pela sua história possui uma autoridade moral e legitimidade democrática junto do povo português (nos termos já citados no preâmbulo da Constituição) - aparecem cada vez mais como um embuste, sobretudo tendo em conta que o PCP é o partido que menos tem contribuído para o tal «monopólio da representação política» e que menos influência tem exercido na área do poder, principais argumentos avançados pelos autores de tais medidas. Aliás, nenhum outro partido português consagra no seu programa e estatutos tanto espaço á Revolução de 25 de Abril e às suas conquistas democráticas como o PCP. Só isto mostra o ridículo de tão repentino assédio de zelo «democrático».
Finalmente, a regulamentação excessiva do funcionamento dos partidos como se verifica na Alemanha, e a prática política que aí se instalou, acabaram por desarmá-la e enfraquecê-los na sua autonomia e capacidade de decisão. É assim que vamos encontrar os mesmos grupos económicos e financeiros que apoiaram e se serviram do nazismo, novamente incrustados no poder pela mão dos partidos governamentais. Consagrada a sujeição definitiva do poder político ao poder económico, o aparelho do Estado (Ministério do Interior, Serviços de Defesa da Constituição, Tribunal Constitucional) passou a vigiar os partidos, os seus princípios programáticos e organizativos, ameaçando-os de interdição, infiltrando-os com agentes secretos (Verfassundschutz) e colocando em ficheiro as biografias e a ideologia de centenas de milhares de cidadãos. O surgimento de um novo partido na Alemanha, seja de esquerda ou da direita, desencadeia automaticamente uma azáfama por parte do ministério do Interior, dos serviços de espionagem e dos media no sentido de por em dúvida a sua conformidade com a «ordem democrática». Foi assim com os Verdes e com os sindicatos de esquerda, com os Republicanos, e é ainda hoje com o PDS e o DKP. Nos últimos meses, o Tribunal Constitucional de Karlsruhe teve mesmo de interromper o processo interdição de um partido de extrema direita, o NPD, por se ter descoberto que o ministério do Interior tinha baseado o procedimento de interdição em declarações «anticonstitucionais» proferidas por dirigentes do partido que são simultaneamente agentes da polícia política daquele Ministério. Um número significativo (cerca de um terço) dos dirigentes do NPD são pagos pelo Serviço de Defesa da Constituição (verfassungschutz) ao ponto de alguns círculos reconhecerem que sem os dinheiros do serviços secretos e a ligação orgânica ao ministério do Interior, o NPD não teria a menor possibilidade de existir. Independente da orientação ideológica do referido partido, este caso mostra claramente que o Estado alemão está em condições não só de controlar por dentro os partidos políticos, mas também de apoiar e alimentar a sua existência quando isso lhe for conveniente, ou de os dissolver quando, por exemplo, devido ao elevado número de eleitores, passam a baralhar o jogo parlamentar e a entrar em concorrência com os partidos estabelecidos. Isto não são factos dos anos cinquenta mas passa-se hoje, no ano de 2003, na Alemanha. Terá sido para isto que se fez 25 de Abril? Será por isso que alguns continuam a defender uma Europa federal, a Europol e, como já se fala, um Procurador Geral europeu? Não é certamente por dedicação e amor à democracia que se pretende criar artificialmente uma contradição entre o funcionamento interno do PCP e as normas constitucionais. Se fosse esse o caso não faltaria uma infinidade de instituições a necessitarem de democratização necessária e urgente como é o caso dos sectores referentes à esfera dos direitos sociais, ao processo de apropriação da riqueza e da produção, das decisões no interior das empresas, das redacções dos media e de outros centros do poder real onde a democracia está proibida de ultrapassar a soleira da porta. Mas, como o PCP continua a recusar ser mais uma peça do aparelho ideológico e administrativo destinado a garantir a submissão de uma maioria trabalhadora a uma minoria endinheirada, em nome de uma falso conceito de «democracia» ou de «constitucionalidade», é necessário procurar por todos meios destruir aquilo que o distingue exactamente de todas as outras forças políticas. Ë a liberdade de analisar e esclarecer sobre a actual natureza real do poder, como o faz o PCP, que se pretende proibir inventando um tipo único, oficial e eterno de democracia. Para preservar a liberdade estatutária e de organização interna dos partidos, a Constituição da República Portuguesa diz apenas que «os partidos políticos devem reger-se pelos princípios da transparência, da organização e da gestão democrática e da participação de todos os seus membros».
Ao tentarem subverter o sistema político consignado na nossa Constituição com base numa doutrina constitucional de carácter policial, aplicada na Alemanha nos tempos da guerra-fria e que conduziu à ilegalização e perseguição dos comunistas e a milhares de interdições profissionais, estes campeões da nova «democracia» procuram sobretudo, a coberto da cortina de fumo da «protecção da ordem democrática» (expressão utilizada pelo próprio Vital Moreira), esconder o carácter reaccionário e passadista de uma concepção de Estado que faz de cada cidadão um suspeito e um potencial inimigo da Constituição. A lógica é clara. Quanto mais barreiras, obstáculos e requisitos se exigirem aos cidadãos e ás organizações políticas para serem consideradas democráticas e politicamente conformes, mais aumentam as probabilidades da sua incriminação. Atolados no pântano da chamada «modernização» do sistema político que pretende perpetuar o saque dos cofres do Estado por uma clientela política parasitária, facilmente manipulável pela oligarquia dos mercados, e que definiu como objectivo prioritário minar a autonomia política e financeira do PCP (partido que não se vende) e, se necessário, proibir a «Festa do Avante!», tais doutrinadores que mais parecem ministros do interior de uma república das bananas, nem se apercebem de que já foram demasiado longe e que neste momento já estão eles próprios a conduzir a locomotiva que puxa o comboio do regresso ao 24 de Abril.