- Nº 1531 (2003/04/3)
Competitividade, privatizações e modelo social europeu

A máscara social do neoliberalismo

Europa
O balanço da «Estratégia de Lisboa» não podia ser pior: crise económica, desemprego, agravamento das desigualdades. Inflexível, porém, a União Europeia mantém o rumo.

Lançada há três anos, durante a presidência portuguesa da União Europeia, a «Estratégia de Lisboa» propunha-se fazer uma espécie de quadratura do círculo. Apostando claramente em orientações neoliberais de privatização de infra-estruturas e serviços públicos proclamava, ao mesmo tempo, respeitáveis objectivos sociais como a diminuição das desigualdades e o pleno emprego.
Até os menos atentos, e mais ingénuos, depressa constataram que, afinal, o fraseado social apenas serviu para mascarar os verdadeiros objectivos. O que se passou realmente?
Ao longo de mais de duas dezenas de intervenções, dirigentes dos PCP, deputados do Parlamento Europeu do Grupo Confederal da Esquerda Unitária/Esquerda Verde Nórdica, representantes de sindicatos de diferentes sectores, comissões de trabalhadores, associações de pequenos empresários, de deficientes, de reformados fizeram uma análise da actual situação económica e social no nosso país, de que sobressai um inegável cenário de crise e recessão.
Na iniciativa, realizada na passada sexta-feira, 28, em Lisboa, a deputada Ilda Figueiredo, do CC do PCP, uma das primeiras oradoras, observou que, «face ao fraco crescimento do emprego, à sua óbvia baixa qualidade, ao agravamento do desemprego em diversos países e ao abrandamento da situação económica (...) impunha-se que o Conselho [dos 15 estados-membros] fosse capaz de inverter as orientações políticas neoliberais e enveredar por um política que desse prioridade ao emprego, ao investimento público, à inclusão e à coesão económica e social».
Em vez disso, porém, como afirmou a eurodeputada, o último conselho de chefes de Estado e de governo da UE, de 20 e 21 de Março, insistiu nas reformas económicas acelerando «o processo de liberalização em sectores e serviços (...) secundarizando sempre a área social e subordinando os objectivos do mercado laboral, da educação e da sociedade ao espírito empresarial».
E mesmo a decisão saída de criar o Grupo de Missão para o Emprego suscita naturais suspeitas: «Será para sossegar alguma inquietude em consciências onde ainda resta alguma sensibilidade aos problemas de milhões de desempregados ou visa apenas encontrar formas de contornar a Estratégia de Lisboa para facilitar a aplicação das orientações neoliberais?», inquiriu.


Viragem necessária

Interrogando-se sobre as causas do óbvio fracasso da «propagandeada estratégia», Sérgio Ribeiro, antigo eurodeputado e actual membro do Comité Central PCP, refutou as explicações que assentam na mudança da conjuntura. «Mas as estratégias não servem para condicionar as conjunturas?», questionou, para logo de seguida recordar que «as estratégias vão-se acumulando, não se sucedem corrigindo-se. Desde meados dos anos 80 somam-se, a começar pela do crescimento e emprego e com referência relevante à Estratégia Europeia do Emprego, no seu quinto ano, com a empregabilidade, a adaptabilidade, o espírito empresarial, a coesão social», a servirem de base ao «bem intencionado» discurso político.
Os números, esses, não deixam margem para dúvidas: «em estatísticas distribuídas esta semana, o INE revela que, de Agosto a Janeiro, o nível de emprego total diminuiu 2,3 por cento, o que foi agravado com a queda das remunerações de 3,6 e com um aumento de 6,2 das horas trabalhadas», referiu o economista.
Para o deputado sueco Herman Schmid, do Partido de Esquerda, «não se verificou um real progresso desde a Cimeira de Lisboa. Apenas as medidas mais liberais foram concretizadas». Por isso, afirmou, devem ser os estados, através de estratégias nacionais, a contrariarem aquelas orientações, nomeadamente em áreas como os serviços públicos, a protecção social e o emprego. Schmid, que em breve apresentará um relatório sobre o emprego no Parlamento Europeu, está consciente de que não será fácil alterar as políticas em curso: «A Comissão mantém a sua estratégia que favorece as liberalizações e as concentrações secundarizando os sindicatos e os compromissos sociais»
Sylviane Airnardi, do Partido Comunista Francês, manifestou a esperança de que «as forças progressistas consigam impor as suas orientações na construção europeia». Como área de intervenção prioritária, a eurodeputada elegeu a luta em defesa dos serviços públicos e o combate ao dogma da privatização.
Referindo os diversos sectores onde a liberalização avança (correios, transportes, caminho de ferro, serviços portuários, controlo aéreo, etc.), Airnardi condenou a marcha forçada imposta pela Comissão Europeia, e lembrou que, até ao momento, o executivo comunitário não procedeu à avaliação dos efeitos produzidos pelas liberalizações exigida por um relatório do Parlamento Europeu.


Direita aposta no retrocesso social

Se é verdade que as orientações tomadas a nível europeu condicionam cada vez mais a acção dos governos, continua a caber a estes um papel determinante na situação de cada país. Portugal, pelos piores motivos, é disso um exemplo claro.
O súbito agravamento das condições económicas e sociais verificado no último ano, não pode ser desligado da entrada em funções do Governo PSD/PP que, «com opções agressivas e de retrocesso social, não se limitou a seguir cegamente as medidas mais pretorianas da União Europeia contidas no Pacto de Estabilidade. Articulou com essas orientações algumas políticas de ajuste de contas com os avanços e direitos sedimentados no nosso regime democrático-constitucional que resultaram do acto e do processo da Revolução de Abril».
Na análise de Jerónimo de Sousa, deputado na AR e membro da Comissão Política do PCP, as prioridades definidas pelo Governo (ataque à segurança social; alteração das leis laborais; diminuição de salários e direitos na administração pública em simultâneo com a privatização de serviços públicos e funções sociais do Estado), «acentuam as desigualdades sociais e as assimetrias regionais», fortalecendo «a concentração de riqueza e a acumulação de capital».
A realidade mostra que entre 2001 e 2002, segundo as estatísticas oficiais, o aumento do desemprego foi de 26,3 por cento. A tendência mantém-se em 2003. Como lembrou Jerónimo de Sousa, este flagelo já atinge mais de 480 mil trabalhadores.
Este dirigente comunista chamou ainda a atenção para o facto de «num país com atrasos estruturais no ensino, na formação e na qualificação» o desemprego entre os mais instruídos ter passado de 24 mil, em 2001, para 30 mil no final de 2002.
«Esta realidade portuguesa entra em rota de colisão com as abundantes declarações e objectivos sociais da Cimeira de Lisboa», concluiu Jerónimo de Sousa, realçando a resistência «notável» dos trabalhadores em torno da CGTP-IN,«sacudindo o conformismo, rejeitando as chamadas inevitabilidades e desenvolvendo a luta em defesa dos seus direitos, contra o desemprego e por melhores salários».


Estratégia de Lisboa
O fracasso previsível


Intervindo no encerramento do debate, o secretário-geral do PCP, Carlos Carvalhas, constatou que as sucessivas análises feitas pelos comunistas portugueses confirmaram-se.
«Infelizmente concretizaram-se os nossos receios e confirmaram-se as avaliações e considerações negativas que fizemos na Assembleia da República, no Parlamento Europeu e em muitas outras intervenções, durante o primeiro semestre de 2000, aquando da presidência portuguesa da União Europeia que aprovou a dita Estratégia de Lisboa».
Porém, para o secretário-geral do PCP, outra coisa não seria de esperar de «um projecto que, apesar de grandiloquente nos grandes desígnios e desafios, da roupagem tecnocrática e propagandística da Nova Economia, com que se enfeitava a empáfia do então governo PS, assumia em toda a sua estrutura, lógica e objectivos, com meridiana clareza, uma natureza neoliberal».
Confrontando os objectivos declarados com a realidade actual, Carvalhas lembrou que em 2000 falava-se de «um crescimento médio de pelo menos três por cento ao ano, durante a década em que nos encontramos. Em 2001 e 2002 o crescimento não chegou aos dois por cento, em 2003 não se alcançará sequer o valor de um por cento, e todos os analistas e instituições oficiais consideram muito difícil que em 2004 e 2005 se atinja o valor de três por cento».
Também em relação ao emprego, a mesma Estratégia proclamava um crescimento de 10 pontos percentuais, mas «o que temos é o desemprego a subir e, em alguns países como Portugal, a subir em flecha».
Insuficientes são «as desculpas com o arrefecimento económico externo e agora com a criminosa guerra imperialista que os EUA e outros movem contra o Povo iraquiano», uma vez que não esclarecem «por que razão insistem no obsessivo fundamentalismo do Pacto de Estabilidade reafirmado na última Cimeira da Primavera».
O dirigente comunista anotou ainda «o cuidado, a persistência e a pressão com que a UNICE, a confederação do grande patronado europeu, defende a total concretização desta Estratégia». «Este desvelo do grande capital fala bem melhor da natureza de classe da referida estratégia do que uma resma de discursos sobre as boas intenções que alguns analistas lhe atribuem.»


Desemprego, deslocalizações, piores serviços


Parte importante dos trabalhos foi preenchida por intervenções de dirigentes sindicais, representantes de comissões de trabalhadores e de várias associações que, sector a sector, traçaram um panorama alarmante da situação económica e social.
Desde a luta contra a precariedade, que continua afectar as grandes superfícies comerciais, aos maiores atropelos contra os direitos laborais praticados pelas multinacionais de fabricação de material eléctrico, passando pela escalada do desemprego nos têxteis provocada pelas sucessivas deslocalizações de empresas com o beneplácito do Governo e das autoridades europeias – na sessão foram ainda assinalados os efeitos das privatizações nos transportes rodoviários e na energia, com destaque para o caso da EDP.
Pela positiva, Joaquim Matias, eleito na Assembleia Municipal do Barreiro, trouxe o exemplo dos Serviços de Transportes Urbanos que, desde o 25 de Abril de 1974 até Dezembro último, foram ininterruptamente geridos por eleitos comunistas, com resultados que contrastam com a contínua degradação do transporte público desde o desmembramento e privatização da Rodoviária Nacional, ali descrita por Fernando Fidalgo, da Federação dos Transportes Rodoviários e Urbanos.
Nos Têxteis, como afirmou o sindicalista António Marques, foram extintos em Portugal perto de 42 mil postos de trabalho, enquanto que no conjunto da União Europeia se estima que tenham sido destruídos mais de um milhão de empregos, boa parte dos quais devido à deslocalização de empresas para regiões onde a mão-de-obra é mais barata.
O mesmo fenómeno se regista nas indústrias eléctricas, onde várias empresas multinacionais estão a transferir a produção para outros países, lançando no desemprego milhares de trabalhadores. Entre os muitos exemplos referidos por Rogério Silva, da Federação das Indústrias Eléctricas, estão a holandesa Philips, A EPCOS, do consórcio Siemens/Matsushita, ou a sul-coreana Samsung, entre muitas outras.
Mas as privatizações são também elas responsáveis pelo aumento do desemprego. Só na EDP foram reduzidos nos últimos anos 14 mil postos de trabalho; nos transportes, de um total de 15 mil trabalhadores que integravam a Rodoviária Nacional, restam hoje, no conjunto das empresas, menos de sete mil.


Citações

• «Vivemos dias dramáticos de uma guerra de agressão por parte dos Estados Unidos da América contra o povo do Iraque. Os massacres diários a que assistimos diariamente são a prova real e terrível de como os interesses económicos e financeiros se pretendem sobrepor aos direitos sociais e aos direitos humanos à escala mundial. Também em matéria de emprego a realidade a que assistimos – nunca de forma passiva pelos trabalhadores – é idêntica.» - Ernesto Ferreira, da Comissão Coordenadora das Comissões de Trabalhadores da região de Lisboa

• «A falta de qualidade do emprego nas multinacionais é gritante. Mais de seis mil trabalhadores da Visteon, da Alcoa, da Dephi, da Yazaki, da Philips, da Tudor da Lear e da Grundig, entre outras empresas, são portadores de doença profissional com consequência da brutalidade dos ritmos de trabalho e da inexistência de quaisquer medidas de prevenção da contracção de doenças músculo-esqueléticas.» - Rogério Silva, da Federação dos Sindicatos das Indústrias Eléctricas

• «O grupo empresarial em que se transformou a EDP passou a funcionar na lógica capitalista pura das empresas privadas, em que os lucros e os dividendos para os accionistas são mais importantes do que a prestação de um serviço público. (...) Foram encerrados dezenas de postos de atendimento a consumidores e estabelecimentos técnicos (...) o que leva a EDP a afastar-se cada vez mais dos consumidores trazendo-lhes, aos trabalhadores em particular e ao país em geral, graves prejuízos. São frequentes as interrupções de energia e tornou-se muito demorada a reposição do serviço.» - José Franco Antunes, Comissão de Trabalhadores da EDP

• «Entre 1999 e 2001 o desemprego dos diplomados pelo ensino superior subiu de 20.707 para 29,385, isto é, de 6,3 por cento para 7,9 por cento.»
«Estão a diminuir as oportunidades dos diplomados com cursos médios e superiores encontrarem emprego (...) uma instrução de nível superior deixou de garantir uma carreira e a realização profissional».
«A erosão do emprego, e a transformação do desemprego de quadros num fenómeno permanente e crescente, é traduzida pelos números da evolução percentual dos pedidos de emprego registado por habilitações escolares, onde uma média de 24 mil dos diplomados passaram a constituir um stock de desempregados no último quinquénio.»
«Todos os que foram alimentados pela vã esperança de que um académico canudo é o passaporte para uma ascendente migração classista, na sociedade do trabalho precário e de empregabilidade incerta, têm por horizonte o afastamento maciço do processo produtivo de pessoas capazes e economicamente activas.»
«Entre 1999 e 2001, a fuga de cérebros portugueses para o estrangeiro aumentou, fazendo com que Portugal caísse neste indicador mundial da 11ª. para a 29ª posição.» - João Costa Feijão, Confederação dos Quadros Técnicos e Científicos

• «Há muito que a Europa não conhecia movimentações sociais tão fortes. Só último ano realizaram-se quatro greves gerais, duas em Itália, uma em Espanha e outra em Portugal.» - Arménio Carlos, Coordenador da União de Sindicatos de Lisboa

Carlos Nabais (texto) Jorge Caria (Fotos)