Retratos do trabalho

Qual é a reacção dos trabalhadores à aprovação do pacote laboral, apesar da contestação sindical? Quais os problemas dos operários da Autoeuropa, a maior fábrica da indústria automóvel em Portugal? Receiam a sua deslocalização? E como é trabalhar num supermercado, num dos sectores com maior precariedade? Concluímos neste número os Retratos do Trabalho, sobre uma dezena de jovens trabalhadores portugueses.

 

Rogério Nogueira, operário da industria automóvel
Especialista sem galardão

 São 7h54. O turno da noite da Autoeuropa terminou. Rogério Nogueira, operário na fábrica há quase oito anos, deixa a prensa onde são fabricadas as portas dos automóveis Ford Galaxy, Seat Alhambra e Volkswagen Sharan e vai para casa dormir até ao princípio da tarde. Às onze e meia voltará para mais uma noite de trabalho.

Este é o seu quotidiano durante sessenta dias. Seguem-se quatro meses nos turnos da manhã e da tarde. «Temos de aprender a viver com estes horários, temos de adaptar a nossa vida a esta rotina». A mulher de Rogério trabalha das oito às cinco. Quando está no turno da tarde, praticamente não a vê. «Quando entro em casa, está ela a dormir; quando ela sai de casa, estou eu a dormir. Quando estou nos turnos de dia, tenho vida social», explica.

A Autoeuropa, situada em Palmela, é um dos principais empregadores da península de Setúbal: cerca de 3300 pessoas trabalham na fábrica, a maioria jovens. A média de idades é de 26 anos. Rogério Nogueira tem 28 anos e atingiu o topo da carreira há três. Efectivo desde 1996, não lhe foi atribuída categoria profissional pela empresa. «A esmagadora maioria dos trabalhadores não tem categoria. Atribuem-nos o nome de especialista, sem especificar o que fazemos. Faz tudo… Como não temos categoria, não nos podemos queixar. Tenho uma área específica, mas, quando é preciso dar uma ajuda noutra prensa dentro da mesma secção, mudo.»

Antes de começar a trabalhar, Rogério frequentou um curso teórico-prático durante três meses. Regularmente, tem formação profissional. Na próxima semana, começa um curso de electrotecnia. Para além de enriquecer o currículo, estes cursos são um dos requisitos para os operários acederem a funções melhor remuneradas. «Tirando as actualizações salariais anuais, o meu salário não pode aumentar», refere. Se for promovido, Rogério poderá operar uma máquina, fazer reparações na chapa ou desempenhar uma tarefa hidráulica. «A diferença seria de cem euros por mês. Não era nada mau.»

 

O acordo

 

Rogério Nogueira tem um salário base de 815 euros, mas, ao fim do mês, leva só 700 euros para casa. «Ganhamos acima da média. Em comparação com o que se passa aí fora, não podemos dizer que temos um mau ordenado. Só que estagnámos. A nível monetário, o nosso trabalho não é reconhecido. Eu acho que tenho muita responsabilidade para aquilo que ganho. Gosto do que faço, é um trabalho interessante, mas acho que devíamos ganhar mais. Não foi bem o que eu esperava quando entrei para a empresa, mas dá para ir vivendo.»

As perspectivas não são as melhores. Alegando uma baixa de produção devido à diminuição das vendas e à instabilidade internacional, a administração da Autoeuropa ameaçou demitir 400 funcionários. Para evitar os despedimentos, a comissão de trabalhadores chegou a um acordo com a empresa: os operários abdicam de 3,3 por cento do possível aumento salarial do próximo ano e em troca ganham dez dias de férias por ano. O acordo foi assinado na passada sexta-feira. «Temos a garantia da administração de que assim ninguém vai ser despedido. A administração tem cumprido sempre o que tem acordado com a comissão de trabalhadores. Acho que não era agora que ia faltar à palavra», diz Rogério.

Só em Setembro, nas negociações do caderno reivindicativo, os trabalhadores saberão qual será a actualização salarial. Então farão as contas. Por exemplo, se o aumento for de quatro por cento, recebem 0,7 por cento. Em geral, as actualizações salariais anuais rondam os 3,5 por cento, níveis frequentemente abaixo da inflação.

Até há pouco tempo, era normal Rogério e os colegas trabalharem ao sábado, recebendo horas extraordinárias. «Por um lado é cansativo, mas para ganhar mais uns tostõezinhos ao fim do mês temos de fazer uns sacrifícios de vez em quando. Agora a produção baixou e já não vamos para lá ao sábado.»

 

Ameaças

 

Oitenta por cento dos operários da Autoeuropa aderiram à greve geral de 10 de Dezembro contra o pacote laboral. Foi a maior adesão de sempre a um protesto na empresa. «A produção parou por completo. Só foram feitas pinturas no chão e pequenos arranjos. A malta foi alertada. Aquilo é mesmo mau. Quando foi preciso, deu-se uma resposta em massa. Até nos piquetes de greve houve muita gente a participar. Correu bem», considera Rogério Nogueira.

«Pelas conversas que temos, sinto que as pessoas estão apreensivas com o pacote laboral. Parece que estavam um bocado adormecidas e despertaram. O pacote laboral mexe com salários, dias de férias, horários de trabalho – questões que as pessoas sentem na pele. Houve um grande esclarecimento por parte da comissão de trabalhadores e da comissão sindical e isso ajudou as pessoas a acordar para o problema», afirma.

Apesar dos protestos dos trabalhadores, o pacote laboral foi aprovado, mas Rogério não mostra desânimo. «Quando se parte para uma luta, sabemos que, se lutarmos, podemos ganhar qualquer coisa. Tudo fizemos para que o pacote laboral não se concretizasse. Há pessoas que se sentem revoltadas. Aquilo é mau, está mais que provado que é mau.»

As deslocalizações das empresas estrangeiras são outra preocupação dos operários da Autoeuropa. «Isso é o papão», declara Rogério. «Há quem comente: “Se a gente protesta, eles vão para o Leste da Europa, porque lá ganham menos de metade dos salários.” Mas eu acho que, se a empresa cá está, é porque temos alguma especialização e sabemos trabalhar. Quando se instalou em Portugal, sabia quanto é que nós ganhávamos e já conhecia a legislação laboral. Não caiu de paraquedas, às cegas. Uma empresa destas faz um estudo prévio.»

Apesar de tudo, Rogério receia que a empresa saia do País, mas não lhe parece provável que isso aconteça a curto prazo. «Não sabemos o dia de amanhã. O sector automóvel é muito incerto. Tivemos aqui a Renault uma data de anos e, de um momento para o outro, foi-se embora. Não quero acreditar que isso vá acontecer nem posso estar todos os dias a pensar nisso.»

A Autoeuropa tem um grande peso na economia nacional e, em particular, no distrito de Setúbal, empregando milhares de pessoas directa e indirectamente. São várias as fábricas que trabalham para a Autoeuropa, como a Vistion, a Indelma e a Delphi.

 

A cara do automóvel

 

Rogério Nogueira não completou o 12.º ano por causa «da célebre matemática». Saiu da escola, fez a tropa e, quando acabou, esteve dois meses à procura de emprego. «Inscrevi-me na Makro, em empresas de segurança… chamaram-me da Autoeuropa e lá estou.»

Rogério controla a qualidade das portas dos automóveis, arruma-as nos raks para serem soldadas, ajuda a operar a máquina e faz algumas reparações nas peças com defeito. «As portas são a cara do carro, não pode haver imperfeições.»

Os automóveis fabricados em Palmela são vendidos em toda a Europa, especialmente na Alemanha e em Inglaterra. Só um por cento é comercializado em Portugal. «Tenho um certo orgulho quando vejo os carros na rua. Vai ali um bocadinho de mim, de nós todos que ajudámos a construi-los. Temos sempre tendência para olhar. Quando vejo uma porta batida, penso que tenho de fazer mais uma.»

Logo à noite, Rogério inicia mais um turno. A máquina prensa, as portas seguem no tapete e ele dará mais um pouco de si ao aço.

 

Paula António, operadora de supermercado
À descoberta dos direitos

Paula António começou a trabalhar aos 18 anos, num café de Tomar, a sua terra natal. Pouco depois veio para Lisboa, onde arranjou dois empregos em part time, um deles num supermercado Pingo Doce. Depois de assinar três contratos a prazo de sete meses cada, ficou efectiva na empresa.

Seis anos depois, Paula quer mudar de profissão. É operadora de supermercado de primeira categoria e trabalha na caixa. Apesar de gostar da profissão, desagrada-lhe o salário baixo e as condições de trabalho. Um dos problemas é a temperatura. As caixas ficam junto às portas que dão acesso à rua e, no Inverno, está muito frio e, no Verão, muito calor. «Nesta altura é gelado, gelado! Depois é um calor que não se pode estar ali.»

Paula trabalha cinco dias por semana, das 8h30 às 17h, e recebe 530 euros por mês. «Comecei com 42 contos de ordenado base. Com os dois empregos recebia mais do que agora, a tempo inteiro», refere. «Os salários são baixíssimos, para aquilo que fazemos. E fartamo-nos de trabalhar. Por dia, faço seis ou sete vezes o meu ordenado na caixa. Não pode ser assim.»

O plano de Paula para arranjar um emprego melhor passa por tirar um curso de informática. E já se informou sobre escolas e preços. Provavelmente, começará em Setembro. O problema é ter quem fique com o filho, de dois anos. Tem de o ir buscar à ama até às oito da noite e o curso é em horário pós-laboral.

«Quanto mais melhorarmos, mais hipóteses temos. Para mudar de trabalho, tenho de ter mais estudos», afirma, mostrando-se arrependida de ter desistido da escola no 10.º ano. Na verdade, o sonho de Paula era ser enfermeira. «Quando somos jovens, não pensamos. Eu podia ter seguido enfermagem, mas não estudei e agora já não dá.»

 

Agressões pouco chics

 

Os supermercados Pingo Doce pertencem ao grupo Jerónimo Martins, tal como os hipermercados Feira Nova e o cash & carry Recheio. No total, são mais de 30 mil funcionários, só na distribuição alimentar. A loja onde Paula António trabalha fica numa das zonas nobres da capital, junto à Avenida de Roma, mas o seu quotidiano tem pouco de chic.

«É bastante difícil lidar com o público. Há clientes amorosos e outros que nem por isso Eu começo a não dar ouvidos. As pessoas falam e eu faço de conta que não estou ali. Se falar, perco a razão aos olhos da gerência», explica.

Paula já foi agredida por um casal que se preparava para roubar a loja. «Eu percebi e chamei o segurança. Eles viram que eu estava a observá-los e atacaram-me na recepção. Depois tive várias esperas no metro. Um dia, o homem entrou na mesma carruagem que eu, mas consegui safar-me, porque fiquei numa ponta e misturei-me com as pessoas. Só descansei quando entrei na camioneta. Estava sempre com medo.»

Paula já passou por todas as secções da loja, excepto o talho e a padaria. Conhece bem as teclas das máquinas registadoras, a textura das maçãs e laranjas da secção da fruta, o aroma dos vários tipos de fiambre, queijo e pastéis da charcutaria e a desarrumação que quem faz a reposição dos produtos invariavelmente encontra nas prateleiras. «Uma pessoa com pouca experiência demora horas no expositor da fruta, porque os clientes vão tirando os produtos e aquilo vai caindo. As coisas têm de estar sempre direitinhas», acrescenta Paula.

Conhece também o peso das caixas do peixe, repletas de gelo. Por as transportar ia perdendo o filho, ao quinto mês de gravidez. «A gerência não aceitou a carta do médico de família que explicava que tinha tido sinais de aborto por causa dos pesos e não me quis tirar da peixaria. Marquei uma consulta com a médica da firma e ela escreveu outra carta ao Pingo Doce, mas eles esconderam-na. Uma colega minha disse-me que a carta já tinha chegado à gerência e eu liguei ao sindicato. No dia seguinte passaram-me para a caixa.»

Paula considera que muitas gerências não respeitam os trabalhadores. «Por exemplo, na Avenida de Paris, o gerente é bruto para as funcionárias. Agarra-as pelo braço e tudo. Até à semana passada ainda não tinham gozado a folga do Natal. Os gerentes não vêem que são trabalhadores como nós e não nos respeitam.»

A precariedade é um dos grandes problemas do sector. «Ao segundo contrato, mandam o funcionário embora e a loja fica com falta de pessoal. Alguns trabalhadores são impecáveis, cumprem tudo, trabalham muito… e são despedidos. Os empregos mais precários são os dos supermercados. Quando se vão embora, temos de trabalhar por nós e por eles. Aos patrões só lhes interessa o lucro», sublinha.

 

Falar também é um direito

 

«Tento cumprir sempre os meus deveres para depois ter os meus direitos», afirma Paula António, que se sindicalizou pouco depois de começar a trabalhar. «A delegada sindical dizia-me que era bom, para me tornar efectiva, que tínhamos advogados que nos davam toda a assistência.» Há um ano tornou-se também ela delegada sindical para substituir uma colega doente. Hoje é dirigente do Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços (CESP).

«Nunca pensei que tivesse tantos direitos», conta. Não sabia que os horários devem ser rotativos e que os trabalhadores têm 25 por cento de descanso compensatório nos feriados. «Mas o principal é o direito a falar. Nós éramos muito caladinhas e ajuda muito se falarmos», garante.

Paula considera que os colegas lutam pouco pelos seus direitos, por medo de represálias ou para não invalidar promoções para outras categorias. «Todos reclamam, mas quando chega à hora da verdade, ficam sempre do lado da gerência. É incrível, mas é verdade. Fazemos plenários na loja com uma ou duas pessoas, mas no dia seguinte os colegas que não foram criticam o que está mal.»

Para ela, ser delegada sindical significa «lutar pelos direitos dos trabalhadores». «Pelos meus direitos, pelos do meu filho e pelos filhos dos outros. Quando eles cresceram, recebem a nossa herança conforme o que lutarmos hoje. Os nossos pais lutaram por nós, agora temos de lutar por eles.»

Paula considera que a luta é também a única resposta possível ao pacote laboral. «Foi aprovado? Temos de lutar mais. Quando fizemos a greve geral, toda a gente devia ter aderido. Agora é complicado, mas temos de lutar e vamos conseguir. Não nos podem tirar tantos direitos.»

«A minha vida é sempre a correr, entre a casa e o trabalho. É muito raro sair. Quando for o pacote laboral, não sei como é que vou fazer. Vão obrigar-nos a fazer horas, de certeza. Já temos a nossa vida e vamos jogando com os nossos horários.»

Até lá, Paula promete não baixar os braços. E, talvez graças a isso, a ameaça não se concretize.



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