A camisa dos vampiros
Fernando Antolin
Santarém(à sua memória)
Querido amigo
Desde que nos deixaste para sempre, há mais de cinco anos, que tenho vontade de falar contigo. Com tudo o que se está a passar no mundo, pensei que tinha de ser agora, já.
A nossa diferença de idades, mais de 30 anos, e as nossas ideologias, tu com raízes na direita fascista, por razões familiares, e eu eterno candidato a comunista, coisa tão difícil, se se é exigente consigo próprio. Tu, sem partido, eu, sempre orgulhoso de ser do PCP. Todas estas diferenças não impediram que uma profunda simpatia e amizade saltasse à vista de todos quando nos encontrávamos. Talvez o prazer de comer bem tenha muito a ver com isso.
Lembro-me de que a primeira vez que me surpreendeste foi quando me contaste como eram os jantares que o grupo de espanhóis apoiantes de Franco fazia em Lisboa, durante a guerra civil 1936-39 e aos quais tu acompanhavas o teu pai. Tu sabias quem eu era e com total naturalidade dizias «Ó Chico, os discursos eram a chatice que se pode imaginar, o jantar era sempre de gala, fato completo, mas o pior de tudo era a comida que metia coisas como lagostas armadas, isto é, lagostas descascadas, cozidas, que depois eram reconstituídas, pondo a carne dentro da carcaça. Vinha para a mesa, às vezes com bandeirinhas da Falange nas antenas, e não havia quem comesse aquilo. Faziam o mesmo com faisões e outras aves. Muitas vezes, tínhamos que ir jantar depois daquilo!»
A nossa amizade cimentou-se na gargalhada sã sobre a estupidez humana.
Comemos muitas vezes juntos. Estávamos sempre de acordo. Tínhamos prazer com as histórias que nos contávamos. Sobretudo tu, que tinhas tanto gozo em contar coisas de há muitos anos, como se tivessem sido ontem («estive na tropa com um rapaz de Chaves que pedia dinheiro ao pai para os gastos e em vez de assinar, punha a marca, em tinto, do fundo dum copo de três no papel, para que em casa percebessem a necessidade») – isto tinha sido há cinquenta anos em Vendas Novas, mas parecia que tinhas saído da tropa ontem.
Nas nossas conversas também falávamos de outras coisas, da vida, da política, e sempre notei um respeito pelas minhas ideias e pela minha prática, que eu sempre tomei como pontos altos da tua honestidade intelectual.
Quando nos deixaste veio-me à cabeça homenagear-te como fez Grimond De La Reyniere nos fins do século dezoito (citado por Paulo Duarte, «Variações sobre a Gastronomia», Seara Nova, 1944). Um amigo morreu e estava previsto um jantar. Quando se soube, pensaram anulá-lo. Mas De La Reyniere achou que não. Devia honrar-se o amigo, unicamente deviam mudar a sala, os fatos (tudo de negro) e a comida, que passou a ser: caviar, sopa de feijão preto, chocos estufados com tinta, morcela de sangue (boudin), com trufas negras. Ameixas negras de fruta. Vinhos tintos de Bordeus, dos mais carregados de cor.
Claro que tanto luto não quer dizer, hoje, tanta pena. Mas, em tua memória, apeteceu-me comer «Pollo al chilindrón», frango guisado com legumes, que tu cozinhaste um dia em Santarém, com a receita arquivada na tua memória de descendente de gente de Navarra, lá longe junto aos Pirenéus.
Não o fiz e tudo ficou na pena do amigo perdido.
Mas, disse-te ao princípio que tinha urgência em falar contigo agora e ainda não te disse porquê.
Aqui há uns dias, nos Açores, juntaram-se quatro macacos (digo isto, mas não quero ofender os simios): um George, ex-alcoólico, que é o chefe; um Jose Maria, ex-franquista, que é espanhol; um tipo que diz com imensa piada que é trabalhista ou socialista (uma coisa assim), o Tony, que é inglês, e que pensa que a Rainha Victória ainda está viva e um Zé Manel, ex-maoísta, discípulo do educador da classe operária, camarada Arnaldo Matos, que agora diz que é o primeiro ministro de Portugal. Este último só lá estava para pagar a cama, perdão, o jantar.
Esta gentalha declarou guerra ao mundo porque o alcoólico tem mais armas do que os outros países do mundo todos juntos.
Quando tu andavas nesses jantares sabias que os fascistas portugueses iam de camisa verde, os espanhóis azul, os italianos negra e os alemães, castanha. Tu sabes o que diz essa gente, como mentem, a que cheiram.
O que eu queria de ti hoje, e daí a urgência de falar contigo, era que me dissesses que levam vestido por debaixo dos fatos que vemos na televisão? Que levam vestido na cabeça? De que cor são as camisas: verdes, azuis, negras ou castanhas? Ou inventaram a camisa cinzenta dos vampiros?
Preciso de ti, amigo.