Andar de mal para pior
Os estudantes contestam a nova reforma do ensino secundário proposta pelo Governo. Ontem realizaram-se greves e manifestações em todo o País. Programas que apenas servem para o mercado de trabalho, gestores profissionais e um regime de financiamento que agrava as diferenças entre escolas e o problema do insucesso escolar são alguns pontos contestados. A posição dos alunos é explicada em entrevista por Hugo Garrido, membro da Delegação Nacional das Associações de Estudantes do Ensino Básico e Secundário, e por João Fernandes, membro da Associação de Estudantes da Escola Secundária D. Manuel Martins, em Setúbal.
- O Ministério da Educação contactou a Delegação Nacional para conhecer a vossa opinião sobre o projecto de revisão curricular?
Hugo Garrido - Não.
- E a Delegação contactou o Ministério?
HG - Sim. Fomos recebidos pelo chefe de gabinete do ministro da Educação, em meados de Janeiro. Disseram-nos que algumas coisas não estavam postas à discussão e que não podíamos estar à espera, como estudantes, que as decisões passassem por nós. Essa foi uma das primeiras coisas que ele nos disse. Havia aspectos em que a opinião do Governo e a dos estudantes era incompatível, como os exames nacionais: o Ministério não quer uma avaliação contínua, quer exames para seleccionar alguns para irem para o ensino superior. Disseram-nos que os exames são uma parte integrante da avaliação contínua – quando, na verdade, são formas contraditórias.
- Chegaram a alguma conclusão na reunião?
HG - Chegámos à conclusão que já tínhamos: temos de partir para a luta. O diálogo entre o Governo e os estudantes é praticamente impossível. Aquela reunião foi uma conversa de surdos, nós a apontar as nossas reivindicações e o Governo a dizer-nos que nada daquilo era possível.
João Fernandes - Mais uma vez este Governo mostra o seu desinteresse em discutir com os estudantes, aqueles que sentem no dia-a-dia os problemas da educação.
HG - Dissemos que gostaríamos de lá voltar para transmitir as conclusões das assembleias gerais de alunos e das reuniões concelhias de associações de estudantes.
- Diversas associações de professores manifestaram-se contra. Nas escolas, qual é a posição dos professores?
JF - Na minha escola, os professores estão contra.
HG - Na minha, a maioria dos professores não concorda com a revisão.
- Com os alunos e os professores contra, a reforma tem pernas para andar?
HG - O Governo já deu provas de que não se interessa pelas opiniões dos outros. A nossa luta é precisamente para travar a reforma. A outra revisão curricular também ia para a frente e graças à luta dos estudantes não foi aplicada. Este Governo apresenta uma reforma tão má como a anterior, com aspectos ainda piores. Espera que passe, mas os estudantes vão fazer tudo para a impedir.
- A educação sexual é referida na revisão?
JF- Não. Portugal é o segundo país da União Europeia com mais adolescentes grávidas e o primeiro na transmissão sexual de doenças. Esta legislação foi aprovada em 1984 – é mais velha do que nós! –, mas são muito poucas as escolas onde há educação sexual e na maioria destas há só um gabinete de apoio.
HG - O ME disse-nos que ainda não existia a formação de professores nem infraestruturas. O grupo parlamentar do PSD disse-nos que havia um ónus social à volta da educação sexual, mas enquanto somos conservadores continuam a morrer jovens com sida. Há uma grande falta de informação. Numa escola de Setúbal, fizeram um inquérito sobre doenças sexualmente transmissíveis e três alunos não sabiam sequer o que era a sida. No Barreiro, há uma escola com um gabinete de apoio porque os alunos fizeram greve durante três dias.
- Actualmente, o ensino secundário tem qualidade?
HG - Este sistema de ensino não é o que nós defendemos. Os programas estão muitas vezes desajustados da realidade. O ensino agora não está bom, mas com esta reforma ainda irá piorar.
- Os estudantes estavam contra a reforma apresentada pelo PS e estão contra a do actual Governo. Pode parecer que estão contra qualquer mudança.
HG - Os estudantes vão estar contra qualquer revisão que esteja contra os estudantes. Se houver uma reforma que tenha o contributo dos estudantes e que tenha como objectivo uma educação de qualidade para todos, nós apoiaremos.
- O número de jovens a abandonar a escola antes de terminar o 12.º ano é cada vez maior. Porquê?
HG - Primeiro, muitos estudantes não têm condições financeiras para pagar os livros ou as refeições e que têm de trabalhar para ajudar os pais. Por outro lado, há programas que não têm nada a ver com o mundo real. Em Introdução às Tecnologias da Informação damos o MS-DOS. Raramente se dá os programas completos de Matemática e Português e não são dados de forma agradável para os estudantes. Se um aluno só tiver de decorar e não for levado a raciocinar e a reflectir, é natural que se esteja a marimbar para a escola.
JF - Muitas escolas não têm as condições necessárias para os alunos terem boas notas, o que leva ao insucesso e ao abandono escolar.
- O que acontece a quem abandona o ensino?
JF - Entra no mercado de trabalho como mão-de-obra barata, sem qualificação.
Diz-me as tuas notas, dir-te-ei como é a tua escola
- Como se tem aplicado o Diploma de Autonomia e Gestão das Escolas?
JF - Já há escolas que caminham a passos largos para a privatização.
- Como é que isso se verifica na prática?
HG - Em primeiro lugar, há a privatização de sectores. Há muitas escolas com cantinas privadas, em que o Estado faz um acordo com a empresa, financiando uma percentagem das refeições e os alunos pagando o resto. Isto é o que está a acontecer agora. No futuro, e de acordo com os planos do Governo, o Estado financiará segundo resultados efectivos. As escolas não têm financiamento oficial e terão de procurar financiamento de privados. Primeiro, tentarão autofinanciar-se aumentando os preços do bar, da papelaria, da cantina, despedindo funcionários e não investindo em materiais de laboratório.
- Isso terá reflexos na qualidade do ensino. Se hoje a situação é má ao nível de condições, materiais, funcionários e professores, como será nessa altura?
HG - Ainda se vai agravar mais. Se o Programa de Estabilidade de Crescimento for para a frente e o financiamento depender das notas dos alunos, vai existir escolas de primeira categoria com todas as condições e escolas de segunda, aquelas que já estão deterioradas e que vão piorar ainda mais.
- As empresas só financiarão as escolas se tiverem contrapartidas. O que poderão querer em troca?
HG - Basicamente, vai haver escolas financiadas, por exemplo, pelo McDonald’s e pelo Burger King e pode deixar de haver cursos de carácter geral para haver só cursos de formação profissional vocacionados para trabalhar na empresa que financia a escola.
JF - As escolas são obrigadas a ir buscar ajuda a empresas privadas. Isto implica a participação dessas empresas nos órgãos de gestão das escolas. Uma empresa nunca vai visar os interesses dos estudantes, mas sim o lucro.
HG - Se a escola é para todos e se é pública, é da responsabilidade do Estado, não das empresas. Outra questão é o gestor profissional, também proposto pelo Governo. O gestor, que está habituado a gerir uma empresa para dar lucro, passa a gerir uma escola que tem como objectivo educar, formar profissionais mas também cidadãos.
JF - Os professores deixam de ter um colega a supervisionar o trabalho e passam a ter um patrão.
- Qual é a posição da Delegação em relação ao financiamento das escolas ficar dependente dos resultados dos alunos?
HG - Somos totalmente contra. Em Setúbal, temos uma escola com materiais de laboratório dos mais avançados, salas de aula com todas as condições e uma biblioteca bem equipada. Aí o insucesso escolar é muito baixo. Numa escola da periferia onde chove nas salas e não há materiais de artes e de laboratório, que não tem pavilhão desportivo e onde as casas de banho são muito más, o insucesso escolar é alto. Isto não acontece por acaso: numa são dadas todas as condições e noutra não. Esta desigualdade já acontece e, se a agravarmos com esta medida, a escola que já tem todas as condições vai continuar a obter bons resultados e receber mais financiamento. A escola sem condições e com insucesso escolar, vai receber menos dinheiro e acaba por fechar.
JF - Vai agravar as desigualdades sociais. Os alunos que não têm boas notas – pela falta de condições da escola, pela exclusão social, pela precariedade do emprego dos pais – serão precocemente empurrados para o mercado de trabalho, enquanto os alunos das escolas com boas notas são puxados para o ensino superior.
O estudante que vá entrar no ensino secundário e que esteja a escolher a escola, à partida preferirá uma com melhores condições. Isso significa que as escolas piores vão ficando vazias ou que quem entra nas escolas melhores será seleccionado?
HG - Os alunos serão seleccionados. O que provavelmente vai acontecer é que vai haver alunos de primeira e de segunda. O aluno com boas notas e bem comportado vai para a escola boa. O outro – que se calhar tem más notas devido ao meio em que está inserido – vai para a escola má. Isto cria um ciclo vicioso, em vez de se dar todas as condições para o mau aluno melhorar.
Tens 12 anos? Parabéns, vais escolher a tua vocação!
- A Delegação discorda do número e dos conteúdos dos cursos em que a reforma divide o ensino. Porquê?
HG - O estudante escolhe o curso no 7.º ano, aos 12 anos. O Ministério diz que quer reforçar a componente tecnológica a partir do 7.º, nós consideramos que isso serve para logo no 9.º ano abandonarem o ensino com a formação mínima para ir trabalhar. O ME diz logo para que servem as várias modalidades, ou seja, não há escolha: uns para o ensino universitário, outros para a «especialização profissionalizante», como lhe chamam, isto é, para o mercado de trabalho. Fala ainda do ensino artístico, para a criação de «escolas de excelência».
- O que são?
HG - Na proposta não vem explicado, mas, segundo o chefe de gabinete do Ministro, são escolas de elite, com todas as condições para as artes. Se não há dinheiro para investir nas escolas que não têm o mínimo de condições, como é que vai haver para criar escolas de elite? Outra preocupação nossa é que não há mobilidade entre os cursos. O ME diz que a mobilidade serve só para que o aluno, caso queira abandonar o ensino, disponha das competências básicas para desempenhar uma profissão.
- Se um aluno entrar no 7.º ano num curso tecnológico e aos 16 anos estiver insatisfeito e descobrir que a sua vocação estiver noutro curso, tem de voltar ao 7.º ano?
JF - Exacto. Esta pode ser mais uma medida para empurrar o estudante para o mercado de trabalho. Se chega ao 10.º ano e estiver insatisfeito, não vai voltar ao 7.º e ficar com colegas de 12 anos. Provavelmente vai trabalhar.
- Porque não haver cursos que encaminhem os jovens para o mercado de trabalho, ensinando-lhes as bases de uma profissão?
HG - A primeira questão é que muitas vezes não é uma questão de escolha. Quase de certeza que o filho do operário não vai poder escolher ser médico e irá estudar o mínimo para ser operário. Por outro lado, os cursos de formação profissional não estão suficientemente dignificados. Além disso, estes cursos são muito especializados: ensinam a martelar, não tem a formação geral. O estudante sai como um grande martelador, mas não sabe nada do resto.
- A reforma prevê que sejam os conselhos executivos de cada escola a decidir se ali haverá ou não provas globais. Quais os critérios que estarão na base dessa decisão?
HG - O Ministério diz que as provas globais são dispensáveis e que podem ser uma forma de preparação para os exames nacionais. Isto é mentira, porque a prova global tem um peso de 30 por cento na nota final, como se fosse o quarto período.
JF - É uma tentativa de quebrar a luta estudantil, porque os estudantes que não têm provas globais se calhar não se vão juntar aos que têm e que protestam contra a sua existência. Se me dessem a escolher, eu preferia uma escola sem provas globais, com avaliação contínua.
HG - Dizem-nos que há menos exames, mas temos muitas barreiras ao longo dos anos. Tiram um exame no 12.º ano, mas as provas globais podem continuar a existir e já foram anunciados exames no 9.º ano. Aumenta-se a componente tecnológica a partir do 7.º ano e põe-se uma barreira no 9.º ano para uns quantos estudantes ficarem para trás. Nessa altura haverá um grande abandono escolar.
JF - Um aluno que passe três anos a estudar e que tenha boas notas, pode fazer um mau exame e ali estraga o futuro.
- Com as escolas a optar, criam-se dois sistemas de ensino diferente. Essa situação é justa para os estudantes, havendo uns a fazer as provas globais e outros não, ou seja, só alguns com avaliação contínua?
HG - Claro que é injusto. Pensamos que o objectivo é criar a desunião entre os estudantes. O que teve provas globais pode ficar com o outro que não teve porque conseguiu notas melhores. Se os estudantes contestarem as provas globais não vão estar contra o Ministério, porque este desresponsabilizou-se, vão estar contra o conselho executivo da escola.
- Se for para a frente, o que decidirá a maioria das escolas?
HG - Acredito que as escolas recebam orientações do Ministério para optar pelas provas globais.
- Se dependesse apenas dos professores, o que iam decidir?
HG - A maioria dos professores defende a avaliação contínua e está contra as provas globais e os exames nacionais.
- Qual a vossa posição em relação aos exames nacionais?
HG - Os exames nacionais continuam a valer 50 por cento e o Governo anunciou que vai haver uma nota mínima nos exames para concorrer ao superior. Um aluno que tenha média de 19 e que tenha menos de 9,5 num exame não pode sequer candidatar-se à universidade. O Governo também quer acabar com a segunda fase dos exames.
Conselhos executivos e polícia reprimem estudantes O último dia de luta nacional dos estudantes do ensino secundário, a 28 de Novembro, foi marcado por numerosos boicotes dos conselhos executivos e das forças policiais. Em Beja, um presidente do conselho executivo chegou a bater no presidente da associação de estudantes. No Barreiro, a polícia empurrou os estudantes para dentro da escola. Em Setúbal, a polícia impediu a manifestação de seguir pelo caminho previamente acordado com o Governo Civil. «Noutra escola do Barreiro, o presidente do Conselho Executivo disse aos membros da associação de estudantes que, para terem apoio nas suas iniciativas, teriam de desmobilizar toda a gente», conta Hugo Garrido, salientando que os conselhos executivos referiam que «tinham ordens do Ministério para impedir as manifestações». «São exemplos completamente absurdos de repressão», afirma o dirigente associativo. |
JCP alerta
Revisão agrava problemas das escolas
«No essencial, a revisão curricular não vem resolver nenhum dos grandes problemas do ensino secundário. É a continuação da política elitista que o Ministério da Educação está a tentar implementar no ensino secundário e superior», afirma Cátia Rodrigues, da direcção da JCP.
Cátia sublinha que, «como já tem vindo a ser habitual, o projecto do Governo não foi discutida com os estudantes. Se o Ministério da Educação não conhece a sua opinião, não consegue fazer uma revisão curricular que esteja de acordo com os interesses dos estudantes.»
A JCP alerta para o facto do secundário ficar dividido em cinco modalidades, em que os vários cursos são estanques, bem como para a gestão profissional e o novo modelo de financiamento. «Um gestor profissional estará ali para que a escola dê lucros. Mas a escola não é um negócio, existe para nos dar formação», defende Cátia Rodrigues.
«Um financiamento em que as melhores escolas recebem mais dinheiro é contraproducente, porque os alunos das instituições melhor equipadas têm melhores notas. Se não investirem nas escolas com menos condições, dificilmente os alunos podem ter melhores resultados. Entra-se num ciclo vicioso», refere.
Cátia Rodrigues sublinha que «a JCP está do lado dos estudantes, desempenhando um papel de vanguarda, consciencializando para a luta. Esse é o único caminho para conseguirmos uma educação pública, gratuita e de qualidade.»