Rigores do audiovisual
Não sei se já repararam na doença de que
as várias televisões vêm em geral padecendo, quanto à
tendência amiúde experimentada de muito promoverem (às vezes
em alta gritaria e consoante os vários géneros
considerados) tudo o que é supérfluo, falho de qualquer
espécie de humor ou arredio de qualidades dramatúrgicas e
audiovisuais, com frequência relegando para alta madrugada
programas que seria muito importante serem vistos a horas mais
decentes.
Embora recentemente a RTP tenha invertido de algum modo
esta tendência, no seu caso verdadeiramente suicida, não deixou
durante muito tempo de insistir (e às vezes assim continua a
fazê-lo) em transferir para períodos de emissão fortemente
madrugadores, certos filmes, documentários ou programas de
ficção ou de informação-investigação que ganhariam bastante
em ser vistos por muito mais gente.
Acontece que nem sempre a atenção profissional do crítico
está a todo o momento desperta para os acontecimentos
televisivos eventualmente mais interessantes, sobretudo para
aqueles cuja menção apenas é feita na programação constante
da imprensa diária.
Tal é o caso, por exemplo, da série de filmes - errada e
inadvertidamente mencionados como «documentários» pela
própria RTP, que, ainda por cima, os co-produziu! -
envolvendo o violoncelista norte-americano Yo-Yo Ma e a
sua interpretação e inspiração motivadas pelas Seis Suites
para Violoncelo Solo de J. S. Bach, um verdadeiro
monumento da música de câmara em toda a História da Música.
Série da qual perdi quatro episódios!
Pois o citado Yo-Yo Ma apelou a vários artistas e
criadores de diversas áreas para consigo imaginarem seis filmes
diferentes, de aproximadamente um hora de duração, nos quais,
do ponto de vista da representação corporal e visual,
coreografia, arquitectura e cenografia real ou de estúdio (e do
correspondente tratamento audiovisual) pudessem ser
«interpretadas» aquelas suites.
Embora transmitida a horas relativamente aceitáveis para o tipo
de programa, com começo entre as 23.30 e as 24 horas, apenas
pude lembrar-me de ver a série por duas vezes (e uma delas até
pode ter sido no canal Arte, que também participou na sua
co-produção) sendo que fiquei nos dois casos com impressões
radicalmente diferentes.
No primeiro, «Struggle for Hope», tratava-se da
colaboração entre Yo-Yo Ma (cuja ascendência, vem a
propósito recordá-lo, é japonesa) e Tamasaburo Bando,
um famoso actor do Teatro Kabuki, para uma interpretação
da Suite nº. 5.
Excelentemente realizado por Niv Fichman, o filme dava
conta dos vários ensaios e trocas de impressões entre os dois
artistas, numa impressionante demonstração de uma criação em
progresso e também do encontro entre duas tradições culturais
tão diversas, que resultava na transcendência de qualquer
natural afastamento entre elas.
No segundo e mais recente caso, «Six Gestures»,
realizado por Patricia Rozema e transmitido na passada
quarta-feira, a impressão já foi bem mais negativa. Não porque
os dois colaboradores de Yo-Yo Ma na circunstância
os ex-campeões do mundo de patinagem artística Jayne Torvill
e Christopher Dean não sejam dois brilhantes
bailarinos sobre patins e, portanto, inteiramente capazes de
interpretar a contento, no contexto de um Campeonato do Mundo,
a exigente coreografia inventada para a Suite nº. 6. Mas
sim porque, do ponto de vista da realização, estivemos sempre
perante dois mundos artísticos que jamais se tocaram.
De um lado, estava a patinagem sobre o gelo com os seus códigos
internos e as limitações inerentes ao género; do outro
lado, tínhamos a fabulosa interpretação puramente musical em
relação à qual, no entanto, os próprios lugares de filmagem
eram perturbadores e sem qualquer dramaturgia correspondente ou
significante: Yo-Yo Ma tocando em Times Square,
como se fosse um músico de rua (ideia até simpática mas na
prática por completo demagógica, porque irrelevante e deslocada
no contexto escolhido), ou, então, no interior de uma igreja ou
no exterior de bairros de arquitectura moderna filmados de forma
rebuscada.
E foram precisamente os dispositivos de filmagem escolhidos e a
estética a eles inerentes que subverteram a leitura linear do
filme, que assim serviu mal a música: sempre em busca dos
ângulos rebuscados de captação da imagem, abusando dos planos
picados e contra-picados, sem qualquer correspondência com o
carácter fortemente abstracto da música e, como consequência
do modo de produção escolhido, arrastando consigo a
«obrigatoriedade» de o solista ser filmado tocando em play-back.
Em consequência, foi penoso ver Yo-Yo Ma usando e
abusando dos esgares próprios de uma espontânea «entrega
emocional e criativa», como se estivesse a tocar o que se
ouvia mas, no fundo, numa série de sequências já
pertencentes ao registo ficcional, ou seja, aceitando de
forma passiva um estratagema próprio dos video-clips da pop
(cuja estética invadiu de forma indecorosa todo o filme) e
inteiramente alheio ao mundo da grande música clássica.
E vejam só como as coisas são: só por causa de assim me ser
dado ver o fingimento do transcendente criador musical que é Yo-Yo
Ma é que, daqui para o futuro, será sempre com um pé
atrás que lhe ouvirei as suas interpretações dos grandes
mestres! Francisco Costa