Motes & Voltas
O processo educativo em curso



O tempo estival convida à amenidade dos temas, mas a leitura do documento intitulado "Uma visão estratégica para vencer o século XXI", do Ministério do Equipamento (que título presunçoso!), sobre o Plano Nacional de Desenvolvimento 2000-2006, no que se refere ao sistema educativo, obriga-me a uma abordagem tão inadiável como carecedora de um debate mais aprofundado.
Debulhando o essencial do abundante floreado retórico, ficam algumas ideias-força que requerem um exame mais atento. Fiquemos hoje por duas delas.

1 – "... o dinamismo crescente da sociedade civil e a relevância estratégica dos recursos humanos recomendam uma intervenção de parceria Estado – Iniciativa Privada." (pg. VII – 14).
A fórmula é curiosa porque há uma sugestão de paridade numa área em que a Constituição é clara sobre as responsabilidades do Estado. O próprio documento reconhece que "o Estado ocupa uma posição dominante na produção de serviços de educação".
Não está em causa o relevante papel do ensino privado e o seu carácter supletivo. Há muitas experiências em curso, válidas e úteis para o País.
O que está em causa é o que tem acontecido, sobretudo desde o ministro Roberto Carneiro, em nome da "liberdade de escolha" – a multiplicação de escolas e cursos de iniciativa privada, muitas vezes sem qualidade nem condições mínimas de trabalho, que são favorecidas pelo Estado o qual, depois, nem avalia nem fiscaliza como é seu dever.
O que tem acontecido, com a activa pressão de lobbies ligados a sectores da Igreja, é o financiamento pelo Estado de algum ensino particular sem que o interesse público o justifique.
O que tem acontecido é a invasão do negocismo no sistema educativo, com o espírito do lucro a prevalecer onde há garantias cívicas e direitos sociais a defender.
Ora, o que é preciso evitar é que a escola pública se degrade e se desprestigie e floresçam, à sua custa, nomeadamente no básico e secundário, escolas privadas destinadas a quem pode mais pagar, o que é visível nos Estados Unidos e outros países que os técnicos do Governo tomam como modelo.
O que é preciso evitar é que a Educação se torne, no início do séc. XXI, o que as Comunicações têm sido no final deste século – um negócio de milhões, globalizado, e com uma intervenção tendencialmente residual dos Estados nacionais.
Sabe-se como os investimentos dos maiores grupos se fazem: com loas ao mercado, ataques ao Estado, mas parasitando quanto podem o próprio Estado.
As parcerias são a receita apresentada pelo PS no governo. Mas atenção: é imprescindível assegurar os direitos constitucionais e o interesse público, e delimitar, com clareza, o que é investimento público e o que é investimento privado.

2 – Para um novo "paradigma da prestação de serviços educativos" (esta linguagem mercantilista e de filiação anglo-saxónica...), é proposto um sistema "centrado em escolas inseridas em comunidades concretas" (pg. VI–9).
Traduzindo: escolas, ou agrupamentos, consoante o grau, financeiramente dependentes, nos seus "projectos educativos", de recursos autárquicos e dos impulsos e disponibilidades da chamada sociedade civil ou seja, no caso, das empresas existentes no "território". Neste caminho, têm sido determinadas diversas medidas pedagógicas e administrativas e foi imposto o novo regime, tão contestado, de gestão e autonomia das escolas.
É uma feira de ilusões e um jogo de enganos o que aí vem.
Questionemos, então:
- Não poderá criar, a prazo, tal sistema, mais desigualdades entre as escolas (e por isso entre alunos e entre professores) consoante os municípios e as freguesias em que estão situados?
- Será próprio de um sistema obrigado a proporcionar igualdade de oportunidades, a tendencial confinação de cada estudante às perspectivas existentes no meio em que habita?
- A autonomia de que se fala não significa, afinal, a progressiva desresponsabilização financeira do Estado, e centralismo do mais puro dada a teia burocrática que se está impôr?
Noutro plano:
- Não se estará a empurrar os cidadãos para um universo de individualismo desenfreado, de competição sem limites onde só contam os triunfadores, em que cada um se torna, à força, empresário de si próprio?
Terá mesmo de ser assim? Apesar de vivermos uma época de velocidade dos processos e em que se valoriza a flexibilidade dos sistemas, não haverá outro caminho?
Há, certamente, e contará com o apoio e o contributo dos que acreditam na Escola Pública como pilar de uma democracia integral. Sem o neo-liberalismo a inspirar a política do Ministério pela mão, na circunstância, do PS.
Vale a pena ler o artigo de Riccardo Petrella, no Monde Diplomatique de 8/99, sobre O espoliamento do Estado, onde se refere à atomização dos bens colectivos e a entrevista com o professor Paolo Gentili da Universidade do Rio de Janeiro, intitulada "Menos Estado pior Estado", onde se aborda a experiência latino-americana de municipalização do ensino, na Página, de 11/97.— Jorge Sarabando


«Avante!» Nº 1343 - 26.Agosto.1999