Pois falemos de ética
Por Sérgio Ribeiro
Quando, como comunistas, discutimos amigavelmente ou não - com quem não o é, uma das maneiras destes nos darem, a seu juízo, um golpe de misericórdia é atirarem-nos com um "pois... é a tal apregoada superioridade moral dos comunistas..." e logo acrescentarem dois ou três casos, individuais ou de colectivos, que ilustram situações em que essa superioridade não é nada evidente, ou bem pelo contrário.
O golpe, além de
pretender ser de misericórdia, é baixo. Começa por isolar uma
frase que nossa foi - e é - de um contexto relativo e
absolutizá-la, como se o que dissemos - e dizemos
pretendesse afirmar que ser comunista é ser superior moralmente,
quer individualmente quer em colectivo; depois, porque muitos dos
casos, apresentados em apoio definitivo à ironia assassina, ou
nada têm a ver com a afirmação tal como a fizemos e
fazemos -, ou nada têm a ver connosco porque se referem a quem
nunca foi comunista ou deixou de o ser... talvez até por não
terem suficiente estofo moral para o continuarem a ser.
Entendamo-nos (e para nós escrevo): escolher ser comunista
e ser comunista é uma escolha! não é adoptar um
estatuto de superioridade moral. Não passamos a ser, por
comunistas termos escolhido ser, nem melhor nem pior que éramos
antes nem melhor nem pior que outros que essa escolha não
tiveram oportunidade ou condições para fazer. No entanto,
depois de feita a escolha, dela ter passado a ser nossa pele e
não nossa camisa ou farda, temos de ter um comportamento
diferente, coerente com o estatuto que aceitámos e com os
programas para cuja definição passamos a contribuir.
Vem isto a propósito de quê?
Na minha anterior
colaboração, sobre o jogo eleitoral que aí está e suas
batotas, escrevia sobre a dramatização bipolarizadora que já
começara e que iria, decerto, ser intensificada.
Não se teve de esperar muito tempo nem por novas do dr. Alberto
João. O caso das viagens dos deputados foi um pretexto mesmo a
calhar. O que para aí vai de insinuações, de acusações, de
insultos, de reacções ofendidas... A discussão política
travestiu-se de debate ético com inevitáveis resultados para a
opinião pública (como eles gostam de dizer...). Que a luta
política é entre o PS e o PSD, que é entre o eng. António,
que talvez não seja tão santinho como parece, e o dr. Zé
Manuel que afinal é mesmo durão e não brinca em serviço.
Mas o mais grave nem é isso. O mais grave é que, no fim de
contas (expressão bem adequada!), a tal opinião pública
confirma a ideia de que os "políticos são todos
iguais". O que é a mais perversa ideia que se pode ter da
política, a mais nefasta para a democracia.
Mas, se políticos somos todos mas todos!, embora só
alguns de nós façam da política profissão -, não somos todos
iguais. E é na diferença que a tal superioridade moral dos
comunistas se expressa. Na diferença que temos de tornar
pública para que também faça parte da opinião que pública
é.
Para isso, em relação a este caso, comece-se por desdramatizar
e por desbipolarizar. Faça-se pedagogia. Que é a tarefa mais
nobre da política. Porque é a que pode trazer outros, todos, a
fazerem política activa.
Como pagar as viagens que têm de ser feitas?
Os deputados têm de
fazer viagens para participar nos trabalhos parlamentares. Antes
de mais, para se deslocarem da sua residência ao local em que se
realizam as reuniões S. Bento, mas o que vai ser dito
serve para os deputados que são eleitos para o Parlamento
Europeu e, nesse caso, Bruxelas ou Estrasburgo -, mas também
para desenvolverem actividades relacionadas com o mandato de
representação que a eleição lhes atribuiu.
A primeira questão que se pode pôr é o do lugar de
residência. Se um deputado foi eleito por Santarém e, apesar de
ter casa em Ourém, vive habitualmente no Largo do Rato, não
cometeria nenhuma ilegalidade mas torceria ligeiramente a ética
se desse como sua residência Ourém e não o Largo do Rato, para
que a maioria das viagens a pagar fosse entre Ourém e S.Bento e
não relativas à curta descida da rua que também de S.Bento se
chama e liga os dois largos (que, no tempo em que estivemos na
AR, se traduzia por disponibilidade do passe social!).
Claro que já se trata de maior entorse à ética se, vivendo no
Campo Grande, um outro deputado (ou deputada) der como
residência a sua casa de praia do Algarve. Mas ainda não se
pode dizer que esse deputado/a estivesse a cometer uma
ilegalidade. Estaria a tirar benefício próprio de uma certa
flexibilidade... ética.
Ora as viagens podem pagar-se por dois grandes métodos.
Num desses métodos, atribui-se uma verba fixa por trajecto e
meio usado - calculada pelos quilómetros ou por outro critério
-, de que o deputado dispõe e utiliza como melhor entender nas
viagens que fizer, podendo faze-las de avião, comboio ou burro,
em primeira ou terceira classe, sozinho ou com a família toda.
Neste caso, o que estará em causa é o montante da verba fixa, e
a nossa diferença na defesa de que ele deve ser aproximado ao
custo de uma viagem individual pelo meio mais directo e rápido,
em condições de conforto e segurança. Se o deputado entender
sacrificar, em todas ou algumas viagens, parte do conforto a que
a tal verba lhe daria direito, e aplicar o que assim poupou para
se fazer acompanhar, é com ele.
Na outra grande modalidade, o deputado é pago pelo custo da
viagem e terá direito a faze-la em determinadas condições.
Normalmente, em avião ou comboio, em primeira classe. A
antecipação ou o reembolso é, ou deveria ser, feito contra
factura. Ora houve e há deputados que, tendo direito a viagens
individuais a um determinado preço, entendem ser esse direito
extensivo a poderem viajar noutra classe, de menor preço, e
aplicar a diferença noutro bilhete para viajarem acompanhados.
É verdade que este chamado desdobramento não sai mais caro ao
Estado, embora esta ilação se baseie no pressuposto de que o
deputado, se sozinho, escolheria o bilhete mais caro... O que de
novo nos coloca no plano da ética e dos seus entorses, embora
sem (me) parecer que se estejam cometendo ilegalidades.
A passagem da fronteira do eticamente duvidoso para a ilegalidade
Na primeira
modalidade, sendo claras as regras, a ilegalidade existe quando
e se, como aconteceu...- o deputado receber a verba fixa (forfaitaire)
por viagens que não realizou. O que motivou, no Parlamento
Europeu onde a modalidade tem sido aplicada -, a que tenha
de ser provada a realização da viagem, com a apresentação do
talão de embarque ou outros documentos. No que respeita à
segunda modalidade, passa-se dos entorses à ética para a clara
ilegalidade quando os deputados atravessam a fronteira da
flexibilidade ética e começam a funcionar, ilegalmente, em
conta-corrente com agências de viagem que lhes passam facturas
que apresentam a reembolso ao Estado, por viagens feitas, por
viagens a fazer ou que, pura e simplesmente, por viagens que
nunca se farão, logo, falsas as viagens e as facturas. Estamos,
então, no domínio policial/judiciário que a todos os cidadãos
respeita, e aos deputados nem mais nem menos que aos outros.
Regressemos das viagens. Regressemos à política, embora nunca
dela se tenha saído. O que não se pode aceitar é que se faça
de um caso de polícia, com a atribuição e hierarquia de
responsabilidades e culpabilidades, o centro da discussão
política. Este tem de ser - ou temos de lutar para que seja! - a
análise e a crítica da forma como estamos organizados em
sociedade, qual o nosso projecto, como ele se confronta com os
outros.
A ética, o respeito pelos outros, os valores que defendemos,
não podem abandonar-nos em qualquer que seja o acto da nossa
vida sim, sim!, também na relação a dois, também no
amor...-, e é essa uma das nossas grandes forças. Não por um
qualquer balofo moralismo. Não por sermos melhores que os
outros. Por estarmos na vida de uma maneira diferente. É essa a
nossa superioridade moral.