O cancro


«Os nossos pensamentos e orações estão com as famílias das vítimas» - a frase é do Presidente norte-americano Bill Clinton e tornou-se numa espécie de ladainha repetida com preocupante frequência nos últimos tempos.

Ouvimo-la a propósito da carnificina levada a cabo a semana passada por Mark Barton, o especulador bolsista que em três dias matou a mulher, os dois filhos e mais nove corretores de Atlanta, e que se suicidou quando estava prestes a ser apanhado pela polícia. Ouvimo-la em Abril quando dois jovens do liceu de Littleton, Colorado, mataram a tiro 13 pessoas, suicidando-se em seguida. Ouvimo-la quando um jovem estudante do liceu de Springfield, Oregon, depois de ter assassinado os pais, matou dois colegas e feriu a tiro mais 25 pessoas. Ouvimo-la em muitas outras ocasiões semelhantes: só nos últimos dois anos, oito massacres do género provocaram 36 mortos e cerca de quatro dezenas de feridos.
De cada vez que os EUA são abalados por tais fúrias assassinas ouvimos igualmente falar da velha questão da liberdade de venda de armas no país, polémica inconsequente num país onde os interesses da indústria armamentista, a violência social e a necessidade de auto-defesa se conjugam na perfeição para justificar a posse de armas.
Curiosamente, o que raramente chega até nós são os ecos da reflexão, que já tarda, sobre as causas deste crescendo de violência nos EUA. O presidente da Câmara de Atlanta, Bill Campbel, chamou-lhe «um cancro que está a corroer o país».
Para além de algumas medidas repressivas levadas a cabo nas escolas e o incentivo à delação - a comunidade escolar é convidada a denunciar alunos, professores, funcionários cujos comportamentos considere «anormais» -, nenhum responsável norte-americano parece capaz de se interrogar sobre o que está a suceder na maior potência do mundo. Deste lado do Atlântico, os comentadores de serviço também não se revelam mais profícuos.
O «país das oportunidades», a «pátria da liberdade», o «campeão dos direitos humanos», o «polícia do mundo», o «expoente máximo da democracia» que aspira impor os seus valores e «the american way of live» a todo o planeta, não consegue explicar por que razão os seus cidadãos - e mais grave ainda, os seus jovens - são acometidos de demência assassina.
Mark Barton era especulador electrónico, uma actividade tão arriscada que a empresa onde efectuava a compra e venda das suas acções, a All-Tech Investment Group, tem ao seu serviço permanente uma empresa de psicoterapeutas para ajudar os clientes a enfrentarem o «stress». Para entrar neste jogo é necessário dispor de um mínimo de 50 mil dólares para abertura de conta, e de um estofo muito grande para fazer face às imponderabilidades do negócio. Barton perdeu no ano passado 300 mil dólares e não recuperou. Estará aqui a razão do desvario? Mas então e os jovens de Oregon e Colorado, que não jogavam na bolsa? E todos os outros casos? O que explica a demência?
A facilidade de acesso a armas favorece sem dúvida a passagem ao acto de matar. Mas o que determina a decisão de matar? Que mentalidade é esta que está a crescer nos EUA em que a força das armas se torna na resposta para todos os problemas?
O paralelismo que é possível traçar entre a política de Estado dos EUA e a crescente violência na sociedade norte-americana está longe de ser forçado. De tanto procurarem o inimigo externo, os EUA correm o risco de ficar cegos perante o «cancro» que os mina internamente. — Anabela Fino


«Avante!» Nº 1340 - 5.Agosto.1999