Duas propostas democráticas


Diz a primeira página de «O Independente» que «em três anos de mandato Jorge Sampaio já atribuiu 636 condecorações». Juntando a estas, as atribuídas pelos dois anteriores presidentes, os condecorados andarão provavelmente na casa dos milhares. Tanta condecoração, para além de banalizar um acto que deveria ter carácter excepcional, coloca várias outras questões, nomeadamente a dos critérios utilizados na selecção dos condecorados – critérios que, segundo penso, deverão ser tidos em conta por quem propõe condecorações: Presidente da República, Conselho de Ministros, primeiro ministro, ministros e conselho das Ordens. Ora, a verdade é que basta uma breve vista de olhos pelas listas de condecorados para constatarmos que aquilo que mais profundamente marca esses critérios é o seu específico conteúdo de classe. De facto, se a memória me não falha, nunca foi condecorado um operário, um trabalhador – daqueles que são explorados, que vendem a sua força de trabalho e nada mais têm para vender e que lutam contra a exploração e pela dignidade humana. Em contrapartida, no lado oposto a estes, entre os exploradores que disso vivem, vários são os condecorados e medalhados.

Em Junho do ano passado, por ocasião da habitual polémica suscitada pela atribuição de condecorações, chamei a atenção para esse «conteúdo político e de classe». E porque na altura se comemorava o 50º aniversário das grandes lutas antifascistas protagonizadas pelo povo do Couço, atrevi-me a afirmar que mais do que a generalidade dos então condecorados, os coucenses tinham direito a todas as condecorações e medalhas existentes. É óbvio que tal opinião não foi ouvida. É igualmente óbvio que, mesmo que o fosse, isso, por si só, não «limparia« o tal conteúdo de classe do critério utilizado. Mas, sem dúvida, abriria na atribuição de condecorações um espaço novo de justiça e de dignidade.

Passado um ano, eis novamente os mesmos critérios e os mesmos condecorados, eis novamente as condecorações e medalhas nas bocas do mundo e nos peitos dos mesmos.
Acontece isto na altura em que 11 trabalhadoras de uma empresa têxtil de Riba de Ave (Filda), ao fim de quase seis meses de luta heróica, vêem um tribunal dar-lhes razão e determinar a sua reintegração na empresa (ver «Avante!» de 29.7.99). Trata-se de uma luta reveladora de exemplares coragem e dignidade: desde 8 de Fevereiro, estas 11 trabalhadoras – que, no exercício assumido dos seus direitos, se recusaram a aceitar um horário de trabalho imposto pela Administração e, por isso, foram impedidas de entrar na Empresa – cumpriram todos os dias, infalivelmente, o seu horário à porta da Empresa – todos os dias de todas as semanas de todos os meses, de Segunda a Sexta feira, à chuva, ao sol, ao vento.
É certo que a Administração da Empresa não cumpriu a determinação do tribunal e é igualmente certo que se fossem as trabalhadoras a desrespeitar a lei, outro galo cantaria – as cargas policiais, como as condecorações, também têm o seu conteúdo de classe e não há memória de cargas policiais sobre administrações de empresas...
Posto isto, aqui ficam duas propostas democráticas e, portanto, inexequíveis: meter dentro da lei quem fora dela actua – nesta caso, a Administração da Filda; e criar a «Medalha da Dignidade e da Coragem», atribuindo-a a quem a merece – neste caso as 11 trabalhadoras da Filda. — José Casanova


«Avante!» Nº 1340 - 5.Agosto.1999