A TALHE DE
FOICE
Abnegação
Afinal a TAP despenhou-se, e foi o seu próprio conselho de administração que esta semana oficializou o desastre.
Segundo as palavras
de Norberto Pilar, o novo homem forte da transportadora nacional,
a companhia atravessa «um momento preocupante e sem
paralelo», dado que o plano estratégico da empresa,
visto e citado pelo Diário de Notícias, regista
uma «acentuada e abrupta quebra de receitas» que
se agravou a partir de Novembro de 1998, ao ponto de, em Maio
deste ano, o resultado líquido apresentar já um desvio negativo
superior a 100%.
A gente lê isto e fica parvo. Quando recentemente esta
administração tomou posse, os discursos, sempre inflamados de
convicção, afirmaram exactamente o contrário do que agora é
dito: disseram, preto no branco, que a TAP ia de novo voar para o
sucesso. Pouco depois, e na sequência de mais uns rumores sobre
a crise da empresa, esta mesma administração e o próprio
ministro João Cravinho passaram mais um atestado de robustez à
companhia aérea nacional, respaldado na telenovela das
«parcerias estratégicas». A seguir surgiu, mesmo, a
apresentação de lucros como prova do bom rumo para onde se
teria encaminhado a TAP, glória desta administração rematada,
há coisa de duas semanas, com a «jóia da coroa»: a
concretização de um acordo entre a administração e o
sindicato dos pilotos, pondo fim a um conflito interminável
desencadeado há mais de dois anos por estes últimos e que, à
superfície da crise, deixou a ideia de ser o responsável pela
queda das anteriores administrações.
A bondade desta nova administração da TAP seria, aliás,
expressamente assinalada por Francisco Felgueiras, porta-voz do
sindicato dos pilotos, que fez questão de a elogiar na pessoa do
seu presidente, Norberto Pilar. Segundo Felgueiras, o presidente
Pilar demonstrou uma «capacidade de diálogo» que nenhum dos
seus antecessores foi capaz de ter. Percebe-se porquê. É que a
«capacidade de diálogo» de Norberto Pilar proporcionou,
finalmente, à elite corporativa dos pilotos a concretização do
grande objectivo que há mais de dois anos movia as suas
intransigentes e insaciáveis reivindicações salariais: a
apropriação da própria empresa, através da atribuição aos
pilotos de, pelo menos, 20% das acções numa das três empresas
que resultarão do desmantelamento e privatização da TAP.
Dias depois, este mesmo gestor de sucesso vem a pública afirmar
que a TAP atravessa «um momento preocupante e sem
paralelo».
Mais: este gestor com «capacidade de diálogo» propõe, como
resposta à crise, a «total abnegação de todos os
trabalhadores», avançando já a ideia de que é urgente
«intervir na área do pessoal», introduzir «novos critérios
de exigência e responsabilização individual», «conter as
promoções» e «criar um subsistema alternativo de saúde, de
maior qualidade e mais rentável».
Ou seja: o que a dialogante administração de Norberto Pilar vê
como solução para os problemas da TAP é pôr os seus
trabalhadores a pagar, em postos de trabalho, salários,
carreiras e direitos, os desastres financeiros provocados pela
incompetência de sucessivas administrações, incluindo a sua.
Quanto aos pilotos, a quem a administração de Norberto Pilar e
o Governo que a tutela já «doou» uma fatia da própria
empresa, a esses não se pede «abnegação», certamente porque
deixaram de ser «trabalhadores» e passaram a proprietários.
O que é absolutamente lógico. No «socialismo» do PS de
António Guterres, a repartição dos deveres e dos direitos é a
mais democrática do mundo: os deveres vão todos para quem
realiza a produção e os direitos pertencem a quem dela se
apropria. Henrique Custódio