Jogo e batotas

Por Sérgio Ribeiro


Os dados estão lançados. Aliás, já se conhece bem o jogo e os vícios. Do jogo e dos dados. Embora as sondagens, que fazem parte do jogo viciado, possam ter começado um pouco contra a corrente do jogo, de tal modo mostram grande - nessas sondagens...- a vantagem do PS sobre o PSD.

Os cubos dos dados deste jogo têm o truque de só mostrarem duas faces, as faces da bipolarização: a do PS e a do PSD. As outras 4 faces só existiriam para fazer figuração, para "fazer de conta" que o jogo que se quer impingir ao povo português é democrático.
A duas delas é dada (tempo do verbo oferecer) uma figuração na encenação/jogo que exige, de vez em quando e às vezes com inusitada insistência, os focos da luz e a amplificação do som. São as do PP e do BE (Bloco de Esquerda, para quem ainda não se familiarizou com a sigla...).
As duas faces dos cubos que sobram neste jogo do sai-sempre PS ou PSD são a da CDU, com o PCP como componente mais significativa no plano político-partidário, e a abstenção.
Ao contrário de todas as outras, a face da abstenção é aquela que ganha quando não se mostra, e tem vindo a ter resultados crescentes reflectindo um outro efeito deste jogo da bipolarização, que é o da desmobilização e desinteresse dos seus verdadeiros intervenientes. Estes vão deixando de participar quando se definem ou viciam regras para se chegar sempre â repetida alternância (ora agora governas tu ou eu, ora agora governo eu ou tu), num faz que muda de política mas segue a mesma.
No espectro partidário, nas 5 faces assim identificadas, resulta claro que a face "condenada", aquela que todas as batotas pretendem impedir de jogar porque o seu jogo é outro, é a da CDU. Porque denuncia os vícios do jogo, porque recusa a bipolarização com anexos e aderentes. Porque é diferente.

Descubra as diferenças...

Não se nega que há outras diferenças. Seria injusto e, aliás, não só respeito as diferenças como me posiciono em relação a elas. Quer dizer, há uma afirmação de postura política à direita e à esquerda. Dos dois polos ao centro. E há, a partir daí, afastamentos e proximidades. Só se lamenta que as proximidades não se traduzam em práticas que as reflictam antes se tornem, por efeito do jogo que se joga, concorrenciais como se de mercado eleitoral se tratasse.
É precisamente essa característica de marketing e de mercado do voto que faz com que, independentemente das proximidades e dos afastamentos, as diferenças se apaguem no exercício da bipolarização, contribuindo essas faces, com as suas estratégias, discursos e práticas, para que o jogo assim se jogue. Emprestando-lhe credibilidade.
No jogo da bipolarização, os candidatos à alternância lutam entre si e batalham pela maioria absoluta sem perderem de vista, à "direita" e à "esquerda", os apoios que possam ter para a conseguir e para, no caso de não a alcançarem, contarem com essas ajudas para prosseguirem a mesma política apesar de apenas disporem de maioria relativa.
Com a CDU não têm tido êxito os esforços para trazer às (des)regras desse jogo essa face dos dados. A que existe e trabalha continuamente, a que apenas tem por apoios as bases e as massas, a que denuncia, propõe, questiona, presta e pede contas, a que faz uma política que não se esgota no parlamentarismo e que, no parlamento, prossegue a política que faz fora dele.
Por isso, convém muito, ao jogo da bipolarização, que haja um interlocutor "à esquerda", que tenha o peso que retirar à CDU, peso que vem da aceitação que provoque num eleitorado que queira reais mudanças, como também eleitores do PS e do PSD desejam. Que muito respeito merecem e serão, a meu ver, os joguetes deste jogo.
Aliás, quando se procuram as diferenças, há que ter em atenção que estas se colocam a níveis diferentes. Há as diferenças ao nível dos eleitores - e muito devem ser p(r)esadas -, há as diferenças de estilo e de discurso, há (e não há) as diferenças no plano das políticas, há (e não há) as diferenças na maneira de jogar o jogo.

A caminho de Outubro

Lançados os dados, é transparente como se pretende jogar daqui até às eleições de Outubro. Sem surpresas.
Está já aí o estardalhaço das batalhas verbais, com os protagonistas habituais, alguns deles com um curriculum invejável (ou indesejável!).
O dr. Alberto João (e/ou outro como ele) faz um dos seus "números", de verdadeira provocação. Diz enormidades sobre autonomia e Estado, democracia e liberdade, desbraga-se em duas ou três frases vulgares, ordinárias, com intenção ofensiva pessoal. Vem logo alguém do PS responder à provocação e, esquecendo os chantagismos separatistas ao som de "Madeira é livre", riposta taco-a-taco às vulgaridades e ordinarices, como quem lava honras feridas com o pus de que se queixa.
Fica criado o ambiente de grande tensão, aparente e no supérfluo, deixando passar o que seria tema político que era de toda a necessidade, para todos, clarificar. Fica o ar de rixa de pátio (perdõem-me os moradores destes...).
É como se "senhoras vizinhas" (que me perdõem as que tanto respeito e muito devo...), a partir de um problema de limpeza da escada, em vez de discutirem concepções e práticas de boa vizinhança entre si e no pátio, se chamassem nomes feios com ofensa aos progenitores, assim salvaguardando tipo de convivência em que são as figuras dominantes. Em alternância pacífica e espectáculo de guerreia gritada para outros ouvirem.
A dramatização faz parte da encenação. "Votem em nós senão ganham eles..." é uma deixa que se irá explicitando. Aparecerá a costumada campanha do voto útil, mas também para que, com toda a simpatia por "objecções de consciência" e radicalizações esporádicas, tudo menos votos para quem não está disposto a jogar o jogo e apenas, teimosamente, se limitaria a denunciar e propor (a chatear!) sem poder ser alternativa. Até porque o jogo é de alternância.
Para este cenário, e seu desenvolvimento, as sondagens servem de pano de fundo, ponto, contra-regra. Não se põe em causa a boa fé e isenção de alguns dos "técnicos" que trabalham na área, embora certas premissas sejam de bem duvidoso fundamento e rigor, mas é indubitável que as sondagens têm um papel a desempenhar.
Por isso me parece que a grande diferença entre PS e PSD recém-divulgada, e interpretada em vários registos, surge em contra-corrente por não estimular a luta bipolar. Tira densidade à dramatização do PS para que se previnam riscos do PSD poder vir a ganhar. Mas, como se comprovará, as sondagens serão ajustadas ou "lidas" por forma a se adaptarem ao jogo da bipolarização.
Por outro lado, começa a ser evidente, ainda mais que em passadas eleições, que o BE e o que este substitui em episódica recauchutagem, vai ter protagonismo, com uma figuração instrumental que não pode ser menosprezada.

Dificuldades e saídas...

O percurso da política, feita neste jogo e suas batotas, desenraíza-a do humus democrático, despreza e fragiliza os mecanismos da representação e participação populares - do povo!
Neste jogo em que, denunciando-o, somos obrigados a intervir, no contexto desta evolução erosiva da democracia que temos de estudar e de contrariar, como reagir? Esta é uma/a questão de fundo (que fazer?).
Antes de mais, haverá que não esquecer nem por um segundo que, por detrás do jogo está o capitalismo, na sua contemporânea expressão, e as relações sociais. O marketing, o mercado do voto, o toma-lá-dá-cá clientelista, reflectem o neoliberalismo e a transnacionalização financeira.
Depois, haverá que ter presente que, não obstante a universalidade da situação, prevalecem as especificidades e que as situações alheias são apenas experiências a ter como referências e lições para uso próprio.
Tal como nunca se procurou (ou deveria ter procurado) importar modelos de socialismo real(izado), que seriam inadequados, como, aliás, acabaram por o ser nas suas próprias terras, também as saídas que, hoje, outros procuram não devem ser mais que estímulo para as nossas reflexões e procura de continuidade da luta.
A oportuna recensão do camarada Edgar Correia, no último número do Avante! sobre o recente livro de Robert Hue, lembrou-me a dúvida já esboçada se a substituição de uma postura de classe por uma pretendida aliciante e aliciadora dinâmica do "prazer de discutir e agir em conjunto" não estará a provocar, em França, efeito contrário ao que era desejado.
Em vez da mobilização com base na diversidade cidadã (por exemplo, justificando a agressão da NATO no Kosovo e incluindo, na lista PCF para as "europeias", quem a defendeu) terá surgido um sentimento de abandono, de orfandade, por parte de estratos da população para quem a existência de classes e luta de classes é uma vivência quotidiana, ainda que não conceptualizada. O que teria levado à procura de outras referências que, no discurso, preenchessem um espaço aparentemente vazio. Não pode ser por acaso que, nessas eleições, a par com a frustração de excelentes expectativas para o PCF, a lista a que - por simplificação - se chama trotskista conseguiu eleger deputados, o que nunca tinham feito, e logo 5, apenas menos um que o PCF que baixou de 7 para 6 quando esperava subir muito.
Dificuldades há e muitas. De avestruz seria negá-lo. Mas atenção às saídas que podem levar a becos... sem saída.

Foi você que pediu
um Portugal em boas mãos?

O percurso da política, feita este jogo e suas batotas, se a desenraíza do seu húmus democrático, se menospreza e fragiliza os mecanismos de representação e participação popular - do povo! -, vai consagrando, ainda que não explicitamente, o clientelismo.
Portugal nas boas mãos de um e o outro a perguntar se o "cliente" já tem o Portugal que quer, são ilustrações da bipolarização fulanizada mas também dessa perversão da democracia que é o clientelismo.
Como escreve Ramon Máiz, no seu pequeno ensaio Desconfianza e poder persoal: os mecanismos elementais do clientelismo político, publicado na sempre interessante revista galega A Trabe de Ouro (nº 31, Julho/Setembro de 1997), existe "uma peculiar funcionalidade do dispositivo clientelar em determinados contextos sociais, ó tempo que a seua perigosa capacidade de erosión antidemocrática, tanto dende o ponto de vista de mobilización política dunha identidade colectiva como da distorción e baleiramento das institucións de goberno local ou autonómico".
Não se deixa, nesta sumária recensão, mais do que o enunciado de uma questão de fundo, apenas acrescentando que o clientelismo começou a tornar-se visível, evidente, enquanto erosão democrática, no poder local. É natural que uma revista cultural e política da Galiza preste maior atenção e até antecipe o estudo e a denúncia do clientelismo (e todas relações aparentadas que vão até formas de corrupção) no quadro do exercício do poder autonómico. No entanto, sublinha-se que as relações clientelares, como vínculos políticos informais, com um particular código ético (ou de ausência de ética), alheios à legalidade democrática explicitada, extravasam para todo o jogo político eleitoral, para o mercado do voto, que, em certa medida, determinam.


«Avante!» Nº 1340 - 5.Agosto.1999