Kosovo
Perseguidos pelo UCK
sem estatuto de refugiados


Milhares de kosovares, a maioria de etnia cigana, continuam a chegar às costas de Itália fugindo das perseguições e dos ataques do Exército de Libertação do Kosovo (UCK). A recepção que lhes é dispensada em nada se assemelha à que foi dada aos albanokosovares. Os refugiados de hoje são tratados como imigrantes clandestinos, apesar de a própria NATO reconhecer que 30 pessoas, de origem não albanesa, são assassinadas por semana na região do Kosovo.

As imagens de velhos, homens, mulheres e crianças marcados pela fome e pelo medo que todos os dias chegam às costas italianas já não mobilizam os media nem comovem os paladinos dos direitos humanos. O último desembarque massivo ocorreu na noite de sábado passado, quando 1.010 pessoas, metade das quais crianças de tenra idade, chegaram a Bari, oriundas do Montenegro, após uma travessia de 12 horas. Dias antes, outras 889 pessoas haviam desembarcado em Brindisi; antes ainda, 60 tinham chegado a Otranto... Até 20 de Julho as autoridades italianas haviam recenseados já mais de 3.400 refugiados.
Todos chegam em busca de asilo político, tentando escapar às perseguições do UCK que os acusa de conivência com as autoridades jugoslavas, mas a recepção não é a que esperavam. Terminada a guerra na Jugoslávia para a população de origem albanesa, os países da NATO deixaram de reconhecer a existência de refugiados políticos. Os que agora fogem, aqueles para quem a guerra ainda não terminou, passaram a ser tratados como imigrantes clandestinos. É uma vez mais a política dos dois pesos e duas medidas a funcionar, a confirmação de que a propalada intervenção em defesa dos direitos humanos não passa de pura hipocrisia.
A própria NATO reconhece, no entanto, que a situação no Kosovo está longe de se encontrar pacificada. Segundo o porta-voz da Aliança, Jamie Shea, que ganhou notoriedade por tanto justificar os «danos colaterais» provocados pelos aliados nos ataques à Jugoslávia, são assassinadas 30 pessoas por semana no Kosovo. Para Shea, a «situação não está fora de controlo», e embora reconheça que a falta de segurança na província sérvia é «grave», faz questão de garantir que «não é catastrófica». Pontos de vista, que se coadunam mal com a expulsão de cerca de duas centenas de milhar de kosovares não albaneses desde a chegada das forças da Aliança à região, e a frequência dos sequestros e assassinatos registados nas últimas seis semanas.
«Temos soldados, mas como toda a gente sabe, os soldados não são precisamente os melhores polícias», disse há dias Shea em declarações à BBC, acrescentando que 3.000 polícias das Nações Unidas deverão ser enviados para a região «nos próximos meses». Até lá, é de supor que a violência contra os sérvios e outras etnias continue, e que os homens do UCK prossigam com a limpeza étnica que estão a levar a cabo.
É curioso registar, a propósito, que o estatuto reconhecido ao UCK pelas forças da Kfor ultrapassa tudo o que se possa imaginar. Ainda no passado sábado o auto-proclamado «primeiro-ministro» do Kosovo, Hashim Thaci, chefe máximo dos independentistas, considerou «inaceitável» que o seu «chefe militar», Agim Ceku, tivesse sido interpelado por soldados russos num controlo de estrada quando se deslocava, fardado, acompanhado por vários membros do UCK. Recorda-se que o «acordo» de desmilitarização inclui o abandono de uniformes e insígnias, o que não está a ser cumprido.
Thaci veio a público exigir que as tropas russas só possam actuar no âmbito da cadeia de comando da NATO. A explicação é simples: a Aliança não só não se incomoda que Ceku continue a ostentar o seu uniforme, como o trata por «general» nos seus comunicados, tal como fazem os generais Mike Jackson e Wesley Clark.
Neste contexto, não é de surpreender que Hashim Thaci se tenha apresentado segunda-feira passada na inauguração da abertura do novo ano escolar na Universidade de Pristina para exigir que o UCK seja reconhecido como «o Exército do Kosovo», fazendo tábua rasa do acordo de desmilitarização que ele próprio firmou com Mike Jackson. Na cerimónia cantou-se o hino nacionalista albanokosovar.

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TPI desconhece
o número de vítimas

O administrador da ONU no Kosovo, o francês Bernard Kouchner, que se tem mostrado incapaz de garantir a segurança da população não albanesa do Kosovo, não revela dificuldades quando se trata de falar do número de albanokosovares que terão sido mortos por forças sérvias e enterrados em valas comuns.
Revelando total falta de isenção e idêntica ausência de comedimento, Kouchner afirmou aos jornalistas em Pristina, no início da semana, que o número de mortos em valas comuns ascende a 11.000, «de acordo com os números do Tribunal Penal Internacional (TPI)», e não aos 10.000 que têm sido apontados pela NATO.
A afirmação causou perplexidade em Haia. Segundo a AFP, o procurador adjunto do TPI, Graham Blewitt, negou que o tribunal tenha avançado com semelhante número.
«Para além de 340 vítimas confirmadas dos massacres que assinalámos no acto de inculpação do Presidente jugoslavo, Slobodan Milosevic, no final de Maio, o TPI não publicou ainda qualquer número» sobre as vítimas do conflito, disse Blewitt. Sublinhando que a investigação «exige um trabalho de muitos meses», o responsável do TPI fez notar que «não avançamos com nenhum número porque não o temos».
De assinalar, já agora, que até à data o TPI nunca se tinha dado ao trabalho de corrigir o número de vítimas insistentemente apontado pela NATO, o que não deixa de ser significativo.
A frequência e ligeireza com que se fala dos mortos em valas comuns, sempre apontados como albanokosovares vítimas das forças sérvias, sem que qualquer investigação minimamente séria tenha sido levada a cabo, e muitas vezes mesmo ainda antes das alegadas valas terem sido abertas, não pode deixar de ser entendida como parte da campanha de demonização do regime de Belgrado. O importante não é provar que as valas existem, quantos corpos contêm, e em que circunstâncias morreram, mas sim fazer a acusação aos sérvios. A reposição da verdade dos factos, se e quando ocorrer, nunca terá o mesmo impacto na opinião pública. A isto chama-se manipulação da informação, como qualquer jornalista sabe.


«Avante!» Nº 1340 - 5.Agosto.1999