O Trigo e o Joio
Nem o barulho das luzes resplandescentes,
nem a profusão estentórica das câmaras, nem a movimentação
das gruas varrendo a pique artistas e plateia, nem a orquestra de
trinta e tal professores, nem mesmo o vestido branco da Directora
de Programas, habilmente escolhido para reagir aos projectores em
meio de tão distinta mundanice em black-tie nem
tudo isto e muito mais conseguiu disfarçar o miserável
espectáculo de mediocridade que constituiu mais uma edição do Festival
da Canção organizado pela RTP.
E, por favor, não me venham com a história de que se trata de
uma opinião crítica subjectiva que não pode sobrepor-se ao
(nem ignorar o) indispensável respeito pelo acto de criação
(musical e poético) de tantos criadores envolvidos. É que, à
excepção de um ou outro caso que terá primado pelo completo
despiste ou oportunismo em termos criativos, só por alcunha se
poderiam chamar «poetas» e «compositores» às criaturas que
escreveram tais letras e tais canções as quais, desta
vez, mais do que em qualquer outro ano anterior, desceram ao
nível mais rasteiro que imaginar se possa.
E não nos venham também exigir assomos de patrioteirismo em
defesa de uma mistela que jamais se pode confundir com uma
qualquer ideia de canção, quando aquela «coisa» que foi
colocada em primeiro lugar por um júri anónimo e escondido das
câmaras regionais vier a sujeitar-se ao vergonhoso confronto com
as outras canções concorrentes ao próximo Festival da
Eurovisão.
Enfim, talvez a presença na plateia de tantos notáveis
governantes (alguns directamente implicados na tutela do nosso
serviço público de televisão) contribua para que se encete de
vez uma reflexão sobre os luxuosos milhões esbulhados aos
bolsos dos contribuintes e assim esbanjados num espectáculo tão
lamentável e sobre uma necessária inflexão na organização de
um evento que, sempre em curva descendente, já foi apesar de
tudo bem melhor do que é nos nossos dias.
Não que aqui se advogue, como é óbvio, qualquer intervenção
administrativa neste sentido, mas para que se estimule e
aconselhe uma firme chamada de atenção face a este escândalo
inaceitável que é imperioso não volte a acontecer e jamais
pode ser ignorado pela tutela responsável.
A talhe de foice, seja-me permitido discordar, entretanto, das
posições de certo modo fundamentalistas da Associação
José Afonso a propósito da oportunidade do momento de
evocação do grande cantor de Abril. É certo que o termo
«pífio» é, porventura, aquele que melhor se aplicaria às
«orquestrações» a que foram sujeitas algumas das melhores
canções do Zeca ali presentes. Aliás, só neste país
se poderia chamar «maestro» àquela figura colocada frente às
estantes da orquestra! Mas a presença de quatro das nossas
melhores vozes da música popular portuguesa e a estóica e
indestrutível qualidade das canções escolhidas acabou por
representar um acto de subversão (e não de transigência) face
à vulgaridade ali instalada.
E convenhamos que, respeitosamente ressalvadas as devidas
diferenças, a presença de um nobre coro alentejano cantando a Grândola
frente a tantos «notáveis» do regime me fez recordar a pedrada
no charco que, de uma outra forma, constituiu a presença de uma
certa Tourada em tempos bem recuados...
Nem tudo vai mal, entretanto, no domínio da boa música popular
no nosso pequeno ecrã sendo que à intromissão do joio
se seguiu o tímido medrar do trigo.
De facto, a estreia, há duas semanas, do programa «Atlântico»
- uma feliz ideia de Eugénia Mello e Castro, contando com
a oportuna colaboração de Nelson Motta, já nosso
conhecido do interessante «Manhattan Connection» do
canal GNT) contribuiu, logo, para que se volte a
ouvir na RTP alguma da melhor música dos vários países
lusófonos tocados pelo grande oceano, esperando-se que também o
Moçambique banhado pelo Índico possa «intrometer-se»
na lógica do programa, como terá sugerido (entre vírgulas) Maria
João Seixas na sua pequena intervenção de há dias.
E a própria enunciação de alguns dos nomes que vão estar
presentes na série como Vitorino, Elba Ramalho,
Rui Veloso, Sérgio Godinho, Edu Lobo, Cesária
Évora, Maria Bethânia, Ney Matrogosso, Paulo
Bragança ou os já ouvidos Gal Costa, Luís
Represas, Dulce Pontes ou Simone
constituem uma garantia da qualidade que sempre deveria presidir
a programas desta área.
Mas «Atlântico» não deixa de ser, também, um exemplo
de simplicidade e eficácia (não ostentativo de recursos
incomportáveis) na concretização prática de uma ideia feliz.
Para já, se como se espera vier a ser transmitido em cadeias de
televisão do país-irmão, poderá contribuir para dar a
conhecer no Brasil muitos daqueles artistas portugueses que há
muito mereciam ter dado da nossa melhor música popular uma
imagem mais correcta naquelas paragens. Depois, porque os
primeiros e melhores defensores e advogados dessa qualidade
poderão ser os próprios artistas brasileiros que, porventura
pela primeira vez, se terão surpreendido com a personalidade da
nossa poética e da nossa música. Finalmente, porque,
polvilhados pelo programa, não deixam de estar presentes, em
curtas mas adequadas intervenções, figuras públicas que dão
credibilidade à matriz originária do programa e excertos
felizes dos nossos (no sentido mais lato da lusofonia)
escritores, poetas e intelectuais
Até que enfim! Francisco Costa