Motes &
Voltas
«No
Passarán»
Não sei de outro livro que nos dê a
conhecer um acontecimento histórico como este "No
passarán!", do jornalista José Viale Moutinho,
dedicado à guerra civil de Espanha.
Não há uma narrativa de factos, ou a descrição dos actos dos
seus principais protagonistas, e a inquirição do seu
significado, como é uso encontrar na vasta bibliografia sobre
esta epopeia do Séc. XX, ainda tão cerca de nós.
O modo de redescobrir a história lembra o trabalho meticuloso e
persistente daqueles arqueólogos que levam anos a escavar a
terra, extraindo com os maiores cuidados pequenos fragmentos de
objectos, e com esses vestígios mínimos conseguem reconstituir
a vida, os costumes, as normas, os valores, a configuração de
civilizações durante anos ignoradas ou mal conhecidas.
Neste caso, não são pedras, mas sim pessoas que o autor nos
desvenda, arrancadas da obscuridade da terra dos vencidos, tão
diferente da aura dos vencedores. De arquivos consultados,
livros, jornais, cartas, testemunhos orais arduamente obtidos,
andarilho de quantas casas, pequenos cafés, aldeias raianas,
Viale Moutinho dá-nos a conhecer a nobreza oculta e o heroísmo
genuíno dos combatentes da Espanha republicana. E ajuda-nos a
compreender que muitas conquistas políticas e sociais radicam
também na gesta do povo espanhol, dos operários e intelectuais
vindos de tantos países para integrar as Brigadas Internacionais
que ofertaram a vida na luta contra o fascismo, naquela que foi
uma batalha antecipada da 2ª Guerra Mundial. Eles enfrentaram o
fascismo na sua fase de crescimento, de força e arrogância, e
foram o corpo vivo e concreto, naquele tempo e naquele lugar do
movimento de emancipação humana que atravessa a história.
A par da evocação da defesa heróica de Madrid, dos massacres
de Badajoz e das Minas de Rio Tinto ou do bombardeamento de
Gernika, contam-se outros episódios menos conhecidos como a
impiedosa repressão dos defensores de Tui contra o assédio
franquista, a carinhosa hospitalidade do povo russo às crianças
refugiadas, a defesa do tesouro artístico do Museu do Prado, de
que Picasso chegou a ser director.
A par de figuras como Dolores Ibarruri ou dos poetas Miguel
Hernandez e Garcia Lorca, ou de Santiago Alvarez, dirigente do
PCE, de quem se desprende um sorriso de bonomia e o gosto de
viver, que fala sem rodeios das sombras da República, outras
figuras refulgem, num imenso fresco onde se reconhecem
dramáticas e sangrentas lutas colectivas, com gestos de entrega
generosa e de heroísmo sem limites, de afecto pelos mais fracos,
de respeito pela verdade, de fraternidade humana. E são estes
outros combatentes, gente anónima, que nunca pensou lutar de
armas nas mãos, trabalhadores que vieram lá do fundo das minas
e dos campos, estudantes e professores que interromperam a vida
escolar, e foram capazes de actos de insuperável coragem e
valentia, de ousadia e inteligência, com grandeza de ideais e
amor pelos outros, que mais surpreendentemente se revelam e se
gravam na memória com a leitura deste livro, crónica de guerra
com gente dentro.
Os guerrilheiros Foucelles, ou Valentin Gonzalez, ou el Coritu,
ou aquela gente transmontana que protegeu Maria de la Libertad,
ou D. Rafaela Lozana, e a sua saga em defesa da lembrança dos
fuzilados de Gijon, são figuras quase desvanecidas no tempo mas
de uma grandeza moral imperecível.
Naturalmente, as páginas mais intensas do livro incidem sobre os
momentos iniciais e terminais da guerra.
A fulgurante e massiva resposta popular ao levantamento fascista,
surge através de testemunhos vividos, muitas vezes com voz
magoada mas sempre digna, de homens e mulheres de que nos chegam
um eco tão sumido, tão longínquo mas, ao mesmo tempo, cheio de
alma.
Os muitos milhares de fuzilamentos sumários do final da guerra e
dos anos seguintes não se tratava da violência
incontrolada que houve do lado republicano mas da violência
legal, exercida em nome da autoridade franquista constituída - ,
são a face mais sombria, uma tragédia de dimensões ainda mal
conhecidas, e que no livro aparecem em múltiplas evocações e
referências por muitos que viveram o pesadelo e dele conseguiram
emergir, ou através de simples cartas ou mensagens de despedida.
A República foi vencida, nos últimos meses anteriores à 2ª
Guerra Mundial. O mundo seria diferente se tivesse resistido. Foi
golpeada pelo coronel Casado e outros dirigentes que, na corrente
da época, encorajados pelas democracias ocidentais preferiram
derrotar a esquerda republicana e comunista a prosseguir o
combate contra a ditadura.
Quando foram publicadas no Diário de Notícias algumas
crónicas, agora reunidas em livro, certos leitores invectivaram
o autor "pelo seu parcialismo".
A memória, que é um alicerce do futuro, nunca é neutra. Mas o
que talvez doa a tais leitores é que a honra, a justeza, a
dignidade da luta dos combatentes da República Espanhola não se
possa medir neste livro por quaisquer declarações ou discursos,
mas sim pela verdade da sua vida.
É esse tesouro escondido de generosidade e confiança num mundo
melhor que o livro de Viale Moutinho nos ajuda a conhecer e a
compreender. Jorge Sarabando