Tal tio, tal sobrinho


Saraiva Tio foi ministro da educação do fascismo. Celebrizou-se pela introdução nas escolas de um famoso método no qual os bufos, os pides e outros cães desempenhavam contundentes e caninas funções pedagógicas.
Saraiva Sobrinho não foi ministro de nada. Enquanto o tio zelava pela aplicação do supra citado método, o sobrinho, pedagogo por tradição familiar, ensinava às massas que «o imperialismo é um tigre de papel».
Aparentemente posicionados em extremos opostos, tio e sobrinho completavam-se, de facto: os canzarrões fascistas e o tigre imperialista conviviam em zoológica e pedagógica harmonia.

Com o 25 de Abril, Saraiva Tio remeteu-se, a princípio, a um prudente assobiar para o ar. Com alguns pides na cadeia, os crimes do fascismo eram, então, denunciados. Mas foi sol de pouca dura: um coro de moderadas vozes fez questão de difundir a sensata observação de que não se deveria ficar a falar disso eternamente, que era preciso enterrar o passado e estabelecer a paz e a concórdia entre todos os portugueses. E assim foi: a pouco e pouco o regime fascista passou a ser designado por «antigo regime» ou «estado novo»; os pides foram libertados e indemnizados pelos injustos castigos de que tinham sido alvo; alguns deles foram, mesmo, condecorados por «relevantes serviços prestados à Pátria»; outros foram mediáticamente glorificados; outros ainda, ao que se diz (até agora sem qualquer desmentido), puzeram a sua vasta experiência ao serviço do prometedor SIS.

Nas últimas semanas, a patriótica operação de democratização do fascismo enfunou as velas e fez-se ao mar. A cartilha fascista foi reeditada em edição de luxo. A facharia ocupou a comunicação social dominante, devolveu a Salazar a sua condição de «salvador da Pátria» e atirou-se às canelas de tudo quanto lhe cheire a antifascismo.
Saraiva Tio, chamando a si a tarefa de enaltecer e glorificar os crimes do fascismo e o seu responsável máximo, vem demonstrando, com o rigor que o caracteriza, que o «antigo regime» era um modelo de virtudes democráticas e outras que tais. E se continuarem a dar-lhe corda, um dia destes proclamará os fascistas, ele próprio incluído, eméritos democratas e heróis nacionais e acusará os que lhes resistiram de porcos fascistas e de traidores à Pátria.

Palavras não eram ditas e eis que Saraiva Sobrinho, do alto do seu «Expresso», decide intervir«na polémica sobre Salazar», a pretexto de que «nos últimos dias se disseram demasiados disparates» sobre a matéria. Apresentando um invejável curriculo - estudou «esse período durante anos», leu «inúmeros relatos de pessoas que colaboraram com Salazar e de outras que foram perseguidas por ele», leu «todos os discursos de Salazar», teve um «pai opositor ao regime» e tem «um tio que foi ministro de Salazar» - proclamou grandíloquo: «Sei do que falo». E falou, repetindo integralmente o que, há 50 anos, diziam os propagandistas do fascismo: Salazar «acalmou um país que (...) se consumia em revoltas quase diárias», «equilibrou o orçamento», «fez uma exposição magnífica de glorificação do império», «construiu estradas, pontes, escolas», «evitou a entrada de Portugal na II Guerra Mundial»...
Bendito Tio que tal Sobrinho tem. E vice versa. — José Casanova


«Avante!» Nº 1320 - 18.Março.1999