Solidariedade com os povos curdo e turco

Por Lino de Carvalho


Mais de 35.000 mortos, cerca de 2,5 a 3 milhões expulsos das suas casas e deslocados só no sudeste da Turquia, milhares de refugiados, dez mil aldeias kurdas destruídas, instituição de um sistema de aldeias vigiadas, interdição do uso da língua, proibição de escolas próprias, não reconhecimento da sua existência como nação, eis um balanço sumário da guerra de extermínio que o regime turco lançou e tem em curso contra o povo kurdo. É assim na Turquia. Mas também é assim no norte do Iraque.

Com uma história que remonta ao Séc. VII a.C., ao tempo dos medos, com os primeiros principados curdos a formarem-se no Séc. X, são hoje mais de 30 milhões os curdos vivendo no Curdistão ou em diáspora pelo mundo, dos quais !5 milhões na Turquia.
Pelo tratado de Sèvres, em 10 de Agosto de 1920, que culminou a conferência dos países vencedores da I Guerra Mundial, o império otomano foi dissolvido e foi reconhecido o direito do povo curdo á auto-determinação e á formação de um Estado curdo independente. Foi sol de pouca dura. Menos de três anos depois, em 24 de Julho de 1923, em Lausanne, as grandes potências anulam o Tratado de Sèvres e substituem-no por outro que fixa as novas fronteiras do Estado turco e ignora a existência do povo curdo. Consagrada a nova divisão imperialista do Médio-Oriente a Turquia começa a emergir como instrumento estratégico do "ocidente". O Curdistão ficou assim repartido entre a Turquia, o Iraque e a Síria. A partir de 1924 o regime turco proíbe a língua, a cultura e as instituições curdas bem como o uso das palavras kurdo e Curdistão. Até hoje.
É neste contexto que se desenvolve a luta do povo curdo e das suas organizações representativas, como o parlamento curdo no exílio e o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) fundado em 1978 e que passou á luta armada em 1984. Abdullah Oçalan é o presidente do PKK e há muito objecto de perseguição pelo regime turco e pelos EUA. As razões são sobretudo de ordem estratégica sem esquecer que o território do Curdistão é extremamente rico em petróleo, fosfatos e outros recursos do subsolo. Como escreve no Le Monde Diplomatique deste mês o Presidente do Instituto curdo de Paris os Estados Unidos "têm mais do que nunca necessidade da cooperação da Turquia, membro da NATO, nomeadamente para a utilização da base de Inçerlik". E recorda ainda que "para os Estados Unidos o PKK constitui também um obstáculo maior á aplicação do acordo concluído em Setembro de 1998 entre os dois principais partidos kurdos iraquianos sob a égide de Madeleine Albright", acordo que constitue mais um instrumento da guerra que os EUA movem ao Iraque. Aqui os EUA utilizam o povo curdo contra o regime de Saddam Hussein. Na Turquia apoiam activamente o regime de Ankara na guerra de aniquilação da nação curda. A carta curda tem sido, assim, desde há muito utilizada como trunfo na estratégia imperialista de alargamento da influência e domínio naquela zona do globo. Dividir o povo curdo para reinar tem sido a preocupação, enquanto a Turquia faz de guarda avançada estratégica dos interesses dos EUA, de Israel e da NATO para o Médio Oriente. Em nome desses interesses tudo lhe é permitido. Ser membro do Conselho da Europa e manter a pena de morte, tribunais especiais de segurança do Estado e desrespeitar múltiplas resoluções de condenação; afrontar doze acórdãos sucessivos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por violação dos direitos do Homem entre os quais acórdãos onde as forças de segurança turcas foram responsabilizadas por terem incendiado e destruído aldeias curdas no sudeste da Turquia; manter 8.700 presos políticos nas cadeias, vítimas de torturas, incluindo seis deputados curdos condenados em 1994 a quinze anos de prisão por no exercício das suas funções parlamentares terem cometido o delito de opinião de defenderem os direitos do povo curdo; invadir e ocupar Chipre; perseguir não só o povo curdo mas todas as forças de esquerda que na Turquia se opõem ao regime ditatorial turco. Só o Partido HADEP – Partido Democrático do Povo viu, desde Outubro, 100 dos seus dirigentes presos e as suas sedes, em Novembro, assaltadas pelas forças de segurança e por grupos fascistas, naquilo que eles próprios intitulam a "noite de cristal". Sobre tudo isto reina, na chamada comunidade internacional, um silêncio atordoador. É a política de dois pesos e duas medidas. Na ex-Iugoslávia ameaça-se bombardear os sérvios em nome da defesa da autonomia do povo do Kosovo. Na Turquia apoia-se uma ditadura travestida de democracia e a guerra do regime de Ankara contra o povo kurdo. E não se argumente com o perigo do fundamentalismo islâmico. Este não se combate com ditaduras. Combate-se apoiado numa sociedade aberta, democrática e tolerante.

É neste quadro altamente complexo e perigoso que Oçalan apareceu em Novembro, á luz do dia, em Itália, porventura confiando demasiada e ilusoriamente nalguns governos que alegadamente apoiariam a causa curda, como a Grécia e a Itália e nas pressões que a partir da União Europeia poderiam ser exercidas sobre a Turquia em defesa dos direitos do povo curdo. Divulgou um plano de paz em sete pontos: o fim das operações militares turcas contra as aldeias curdas; o regresso dos refugiados; a abolição do sistema de aldeias vigiadas; autonomia para o Curdistão dentro das actuais fronteiras turcas; reconhecimento para o povo curdo de todos os direitos que gozam os cidadãos turcos; reconhecimento oficial da identidade curda, da sua língua e cultura; liberdade e pluralismo de religião. A resposta da Turquia foi a intensificação da repressão contra o povo curdo e, em conjunto com os EUA, a perseguição de Abdullah Oçalan até ao seu rapto, da embaixada grega no Quénia, numa operação de terrorismo de Estado envolvendo o mundo subterrâneo dos serviços secretos e a cumplicidade activa do governo grego, o tal que se afirmava amigo da causa curda. Consta que em troca da entrega do leader curdo, a prazo, a Grécia terá dos EUA e da Turquia maior "compreensão" pelas suas reivindicações sobre Chipre. Mais uma vez a causa do povo curdo foi peão de outros interesses e, mais uma vez, foi a vontade dos EUA que ditou a sentença e o comportamento de governos como o de Itália e o da Grécia.
A verdade é que o dirigente curdo está preso e isolado nas masmorras da ilha de Imrali, para onde o regime de Ankara decretou uma "situação de crise" (uma espécie de estado marcial) comandada por um todo poderoso "Gabinete de Crise", dirigido por militares. Torturado, não teve, desde o dia do rapto, em 15 de Fevereiro, direito a qualquer visita de familiares ou a um contacto formal com os advogados (eles próprios ameaçados na sua integridade física). Contou-me um dos dois advogados, Ahmed Zeki Okcuoglu, que conseguiu autorização para o ver em condições muito especiais, na reunião que com ele mantivemos em Istambul durante a visita da delegação do Grupo Unitário da Esquerda Europeia do Conselho da Europa, que não só eles próprios foram provocados por grupos organizados na deslocação para a ilha como, durante a visita que durou vinte minutos, Oçalan esteve sempre rodeado de dois guardas mascarados e de um juiz militar, não se podendo manter de pé, com os olhos vidrados, sem expressões faciais, queixando-se de dores nos ouvidos. Quando tentou dizer alguma coisa de substancial foi impedido pelos torturadores de serviço. Entretanto, os tribunais que o vão julgar são tribunais especiais de segurança do Estado, dirigidos por militares e cumprindo as ordens destes e cuja criação remonta ao golpe de estado militar na Turquia.
Mas o regime de Ankara, em vésperas de eleições legislativas e comunais, aproveita a prisão do dirigente kurdo não só para intensificar a guerra contra o povo curdo mas para incrementar as acções de repressão e de intimidação sobre todas as forças políticas e movimentos que na Turquia se opõem ao regime. Que não vêm de agora. Contou-nos a Presidente da Associação dos Direitos Humanos de Istambul, uma corajosa mulher, Efren Keskin, que desde a data da formação da Associação, em 1986, 13 membros foram assassinados e ela própria foi alvo de um atentado com tiros de metralhadora. Os partidos com quem reunimos – HADEP; EMEP – Partido do Trabalho e PLS – Partido da Liberdade e da Solidariedade/ODP – vivem debaixo de constantes receios. Estão proibidos de expressar qualquer opinião favorável a uma solução da questão curda, porque tal é considerado "separatismo" e pretexto para novas ofensivas repressivas e ilegalizações, como o que o regime turco está, por estes dias a intentar contra o Partido HADEP. Durante a nossa visita fomos abordados pelo Centro de Cultura da Mesopotâmia, fundada por intelectuais turcos e kurdos, e que tinha sido alvo, dias antes da nossa chegada, de um assalto das forças de segurança que, sem darem qualquer justificação, mantiveram 86 pessoas presas durante três dias.
É por isso que ao falarmos e ao solidarizarmo-nos com a causa kurda não podemos esquecer as forças e movimentos progressistas turcos, os trabalhadores, os jovens, os intelectuais, vítimas do regime de Ankara. A solução da questão kurda e o reconhecimento dos direitos do povo curdo da Turquia passa também pela democratização do regime turco.
Exigir a libertação de Abdullah Oçalan e, no mínimo, a sua transferência para uma prisão "normal" onde possa ser visitado regularmente por advogados e familiares e um julgamento imparcial fora do quadro dos tribunais especiais de segurança do Estado e aberto a observadores internacionais independentes; reclamar uma solução pacífica e política para a questão curda e o respeito pela identidade do povo curdo com o reconhecimento do direito ao uso da sua própria língua, cultura e educação; defender a democratização do regime turco e o seu respeito pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem; denunciar a hipocrisia da chamada comunidade internacional e exercer pressão sobre a Turquia nas instituições internacionais; desenvolver um largo movimento de opinião pública a favor de Abdullah Oçalan, dos direitos do povo kurdo e da liberdade de expressão na Turquia, são um conjunto de reivindicações que podem e devem dar lugar a iniciativas de solidariedade. 25 anos depois de Abril usemos a nossa liberdade para ajudar á liberdade dos que por ela ainda lutam.


«Avante!» Nº 1320 - 18.Março.1999