Nova Iorque, 1857 - Portugal, 1999


Ao contrário do que pretendem fazer crer os que procuram reduzir todas as comemorações a rituais saudosistas (certamente por se sentirem incomodados pelo facto de determinadas datas permanecerem actuais e presentes na nossa memória colectiva), as iniciativas que, por todo o País, assinalaram o Dia Internacional da Mulher, constituiram momentos vivos e de grande lucidez e consciência política e ideológica, de grande combatividade, determinação e alegria. Não é por terem sido praticamente ignoradas pela generalidade da comunicação social dominante que as comemorações populares do 8 de Março perdem importância e significado. Pelo contrário, apetece dizer. De facto, à luz da realidade em que vivemos percebe-se que essa comunicação social não esteja minimamente interessada em informar, em fazer chegar às portuguesas e aos portugueses as razões, as reivindicações e objectivos concretos que estiveram presentes e deram expressão e conteúdo às várias iniciativas populares levadas a cabo. Da mesma forma que se percebe estar a dita comunicação social naturalmente vocacionada para abordar todas estas questões no âmbito estrito e estreito da difusão das manobras do Governo, o qual, simulando empenhos na resolução dos problemas existentes, procura camuflar uma política que conduz ao avolumar desses problemas.

Mantendo vivos nas suas memórias os acontecimentos ocorridos em 8 de Março de 1857 em Nova Iorque, e tendo como referência indelével toda a história da luta pela igualdade de direitos e pela emancipação das mulheres, milhares de pessoas - mulheres, homens, jovens - fizeram do 8 de Março de 1999 uma jornada de luta virada para o tempo que vivemos e para o futuro. Muitas e diversificadas foram as realizações concretizadas por iniciativa do Movimento Democrático das Mulheres (MDM) - que há 31 anos assume um papel singular no nosso país, estimulando, organizando e dando voz às reivindicações e anseios das mulheres e incentivando e promovendo a reflexão sobre temas específicos relacionados com a problemática feminina - , da Comissão Nacional das Mulheres da CGTP, da Interjovem e de diversas outras estruturas. E, naturalmente, do PCP - partido que, como pode ler-se no texto de Regina Marques publicado na última edição do «Avante!», «sempre reconheceu capacidade e competência às mulheres para construir, valorizar e transformar, e sempre pôs nas suas (nossas) mãos a luta pelos seus direitos, no quadro da luta mais geral dos trabalhadores e do povo». Do PCP que, além de promover várias iniciativas específicas de comemoração do 8 de Março, juntou a celebração desse dia às comemorações do seu 78º aniversário.

Perante o quase total silêncio da generalidade da comunicação social - é necessário, por razões óbvias, insistir nesta denúncia - as comemorações multiplicaram-se por todo o País. Exemplos disso foram a manifestação de Évora, a concentração no Rossio, em Lisboa, as concentrações junto à Grunding, em Braga, e junto à Tópico Têxtil, em Vila do Conde e muitas outras e diversificadas iniciativas. Milhares de pessoas trouxeram para a rua as exigências e reivindicações das mulheres portuguesas que são, afinal, exigências e reivindicações da maioria da população: a igualdade de direitos, a correspondência entre a legislação existente e o seu cumprimento integral, a rejeição das descriminações nas carreiras, na formação profissional e nos salários em função do sexo, a exigência da resolução do problema do aborto clandestino e da regulamentação da lei de protecção à mulher vítima de violência, o combate à precariedade do trabalho, a redução do horário de trabalho, a rejeição do pacote laboral. Sendo estes alguns dos temas presentes nas comemorações do Dia Internacional da Mulher, é fácil compreender as razões que levaram a comunicação social - em geral, propriedade de grandes grupos económicos e, portanto, unida na defesa da política de direita - a silenciar, a ignorar essas comemorações.

De facto, as comemorações do 8 de Março foram, como não podia deixar de ser, um momento de luta, um momento de combate à política de direita que o Governo do PS diligentemente prossegue na senda de anteriores governos do PSD - política que encara e aborda os problemas específicos das mulheres na mesma perspectiva de classe e com a mesma hipocrisia com que encara e aborda os problemas gerais do povo e do país.
A chamada «campanha pela conciliação entre a vida familiar e profissional», recentemente anunciada pelo Governo, é um exemplo flagrante da demagogia, da hipocrisia à rédea solta cavalgada pelo executivo do engenheiro Guterres. Praticar uma política que (porque viola direitos fundamentais; porque procura impôr um pacote antilaboral que, entre outras coisas, põe em causa o tempo de férias, propugna a flexibilidade dos horários e novas formas de orgamização do tempo de trabalho altamente gravosas, nomeadamente o trabalho a tempo parcial) - introduz no seio da imensa maioria das famílias portuguesas a insegurança, a instabilidade, o medo e, ao mesmo tempo, apresentar-se como o anjo bom portador da boa nova da «conciliação entre a vida familiar e profissional», constitui uma exibição de sadismo, de hipocrisia, de total desrespeito pelos direitos das portuguesas e dos portugueses.

Assim sendo, é óbvio que as comemorações do Dia Internacional da Mulher deram um inestimável contributo para o desmascaramento da manobra demagógica do Governo e constituem um ponto de continuidade para as lutas do futuro imediato. E bastaria isso para as justificar e lhes conferir uma enorme importância social e política. Mas elas assumiram também uma assinalável relevância ideológica, ao confirmarem exemplarmente que a luta pelos anseios e reivindicações específicas das mulheres é uma luta que diz respeito a todas as mulheres, homens e jovens e ao realçarem a consciência e o conteúdo civilizacional da participação das mulheres, ao longo da História da Humanidade, em todas as frentes da luta económica, social, política e cultural, praticando assim, frontalmente, a igualdade de deveres num quadro em que lhes é negada, frontalmente, a igualdade de direitos.


«Avante!» Nº 1320 - 18.Março.1999