Breve
introdução
ao pré-fascismo
Passeava eu pelos diversos canais do
televisor quando, na RTP1, dei de caras com uma rubrica
relativamente recente e que olhara poucas vezes: «Primeira
vez». Fiquei para ver. «Primeira vez» é uma rubrica juvenil,
o que a recomenda especialmente à atenção de quem queira saber
o que a TV portuguesa anda a fazer das pessoas, isto é, do
País, e é da responsabilidade de Rita Ferro Rodrigues, de quem
eu vira no «Portugalmente» duas ou três intervenções no
mínimo prometedoras. Naquele momento, o que estava a acontecer
em «Primeira vez» era uma entrevista em estúdio, com Rita como
perguntadora e um jovem de calvície já mais que incipiente como
perguntado. Em volta, uma escassa dúzia de outros jovens, como
que em simbólica representação da juventude do País inteiro,
escutava com aparente avidez. Mais tarde cada um dos presentes
faria perguntas ou daria opinião, mas isso seria numa outra
fase.
O tema era a política, e por isso arrebitei a orelha um pouco
mais do que é costume. Antes o não fizera, porque o desgosto e
o susto que apanhei podiam ter-me provocado no mínimo uma
depressão reactiva. O entrevistado era douto, isso era coisa que
logo se via pela peremptória maneira do falar, e o seu nome, que
já esqueci ou nunca cheguei a saber, é o menos, porque as
palavras de um nome são o que menos importa quando o portador do
nome diz coisas mais que tendencialmente chocantes, pelo menos
para quem entende bem o que está ele a fazer. Não vou registar
aqui todas as coisas tremendas que lhe ouvi e que, o que é bem
mais importante e grave, ouviram os jovens circundantes mais os
que de Norte a Sul estariam diante dos televisores sintonizados
com a RTP 1. Direi, e será suficientemente esclarecedor, que o
entrevistado adiantava razões excelentes para o desinteresse dos
jovens pela política e para o descrédito dos partidos
políticos. Que considerava que isso de Esquerda e Direita são
conceitos anacrónicos e confusos, claramente se percebendo que
na clara distinção entre uma e outra já só gente jurássica
pode crer. Adiantava o sujeito que um bom e actualizado governo
nada se importará com tal distinção e irá colher, sapiente, o
melhor de cada um daqueles dois pólos. Referia-se com a mais
terminante das seguranças ao carácter obsoleto dos regimes
ditos de Esquerda e varridos já por definitivas derrocadas. Da
recolha de opiniões que se seguiu tornou-se evidente que tais
ensinamentos haviam sido de grande proveito para todos os
presentes.
Sem contraveneno
Dir-se-á que aqui
reproduzido não decorre grande ou sequer mínima novidade. É
verdade, mas é uma verdade infeliz e inquietante. A alegada
repugnância de vários graus perante «a porca da política»
ou, no mínimo, o desinteresse por ela; a recusa da distinção
entre esquerda e direita, e portanto a ocultação das linhas de
fronteira que em cada momento separam uma da outra; a suposta
conciliação de soluções parciais de esquerda e de direita em
molho de demagogia (não esqueça nunca ninguém que até o
nacional-socialismo de Hitler era alegadamente «socialista»
como a etiqueta indicava); a confusão entre a derrota (bem mais
que derrocada) de uma experiência socialista e a presunção de
antecipada derrota de todos os possíveis modelos de construção
socialista; são caracteristicamente elementos básicos da
propaganda pré-fascista que depois de 89 acrescenta às
imposturas tradicionais alguns argumentos de colheita mais
recente.
Tudo era ouvido pelos jovens em estúdio com indícios de
acatamento e concordância que as intervenções posteriores
confirmaram. Mesmo Rita Ferro Rodrigues, que talvez tivesse
responsabilidades especiais pelo menos como responsável pelo
programa, não soube ou não quis contrariar a visita. Sabe-se
que tudo aquilo, no todo ou em parte, é ouvido recorrentemente
na TV e na Rádio, lido na Imprensa, reencontrado sob a forma de
ecos nas conversas do quotidiano. Mas é diferente, pelo menos
mais impressionante, assistir a uma doutrinação assim num
programa consagrado a um auditório juvenil e com tácitos, se
não assumidos, propósitos didácticos. Não me passa pela
cabeça, nem de longe, que Rita tenha querido patrocinar aquela
breve introdução à doutrinação fascista, aliás completada
com alusões descredibilizantes ao Estado-providência e
sugestivas das virtudes de El-Rey Mercado, porque é claro que
também o fascismo já não é o que era. Não tenho a tentação
de recomendar que gente como o jovem careca não tenha acesso às
antenas, isto é, não me apetece propor qualquer forma de
censura. Reclamo apenas que um discurso daqueles não seja
deixado sem contradita, isto é, sem contraveneno, como se aquela
fosse a verdade supremamente sábia e irrecusável.
Nem seria preciso dizer nada disto se fosse outra a televisão
portuguesa, se fossem outras as suas tradições. Mas ela é o
que é, o que sempre foi; por isso, é preciso lembrar o óbvio e
registar o insuportável com uma pontinha de indignação. Talvez
inutilmente. Talvez não... nunca se sabe. E um dever é um
dever, independentemente da sua previsível eficácia. Correia
da Fonseca