O maior espectáculo do mundo


«A maioria absoluta tem duas vantagens e um risco»: assim iniciou Guterres o superior exercício de inteligenciação que, em torno da matéria, produziu no forrobodó do Coliseu. Com tal início estava tudo dito mas o líder bem-amado não se deu por satisfeito e prosseguiu ensinando que «as duas vantagens» eram «a estabilidade e a maior eficácia governativa» e que o «risco» era «o abuso do poder». Depois, eliminando o «risco» com um brilhante passe de mágica ( jurou que o PS nunca abusaria do poder e deu como aval dessa jura a prática de diálogo e democraticidade de que a comédia do Coliseu era exuberante prova ) concluiu, luminar e acutilante, que a maioria absoluta não só não oferecia qualquer risco como era um manancial de vantagens. E enquanto, em bíblica postura, distribuía prodigamente as papas e bolos da sua caridade, ia cuidando da imagem - naquele jeito, tão dele, de ajeitar a madeixa que não precisa de ser ajeitada. E bebia sucessivos golos de água , na esperança de acalmar a sede de poder absoluto enquanto o dito não chega.

«É com enorme orgulho e satisfação que anuncio que Mário Soares aceitou encabeçar a lista do PS ao Parlamento Europeu» - proclamou Guterres, ao som da Marcha «Pompa e Circunstância» de Elgar e dando provas de uma notável capacidade de embargo de voz. Uma geral de entusiasmo inundou o Coliseu. Milhares de pares de olhos procuravam o candidato anunciado. Em vão, porém: Soares não estava no Coliseu. A sua representação era em casa, onde ficou «justamente para evitar dar à minha candidatura a natureza partidária». Mas a transparência democrático-apartidária não se quedou por aqui. Como Guterres jurou e o candidato apartidário confirmou, Soares «não tem nenhuma exigência nem ambição para ter qualquer cargo ou qualquer lugar": «Servir Portugal e a Europa» é o seu exclusivo, nobre, altruista e patriótico objectivo. E com tal jura e tal confirmação, Guterres e o candidato do PS desmentiam frontalmente o Dr. Mário Soares que dias antes «exigia» que o anúncio da sua candidatura só fosse feito depois de garantida a sua «ambição» de ser presidente do PE acrescentando, mesmo, que se o quisessem para ser apenas deputado «não tinha tempo para isso». Sem outras ambições que não sejam as que tem, Soares culminou, então, a sua representação com o colossal embuste de se apresentar como candidato supra-partidário.

«Falar é preciso»: gritou, de pé, durante semanas, o aguerrido Manuel Alegre. Depois, no espectáculo do Coliseu, após um vibrante solo de esquerda, calou-se e sentou-se. A «moção» estava aprovada, «Falar é preciso» desempenhara bem o papel que lhe estava atribuído: o de, enquanto «moção de esquerda», procurar caçar votos na área da Esquerda para dar força à política de direita.

Cumprindo a tarefa de «acrescentar esquerda à esquerda», lá estava, também - satisfeito, sentado e calado - o ramalhete de ex comunistas. Agora sim, hão-de ter pensado, agora dispomos de todo o espaço de debate profundo e democrático que nos faltava nos congressos do PCP. E quando da alteração dos estatutos do PS, o entusiasmo do ramalhete ex rubro há-de ter atingido o rubro. É que não é todos os dias que se assiste a tão singular exibição de pragmática democraticidade como foi aquela de os estatutos serem alterados sem necessidade de votação. — José Casanova


«Avante!» Nº 1315 - 11.Fevereiro.1999