A TALHE DE
FOICE
Receita
Arranje-se um grupo de negociadores
internacionais típico: um norte-americano, um austríaco, um
representante da União Europeia e um russo; espere-se que o
grupo dê à luz um projecto de acordo 80 por cento não
negociável; disponibilizem-se instalações algures na
Europa, por exemplo um castelo em Rambouillet, França, e
deixe-se marinar durante algum tempo.
Enquanto isso, incentive-se uma campanha mediática a nível
internacional que disponha a opinião pública a favor de uma das
partes em conflito (independentistas do Kosovo, suponhamos) e
diabolize-se a outra (sérvios, de preferência); preparem-se os
primeiros com meios materiais e políticos até atingirem o ponto
de arrogância e ameace-se os segundos até ao limite da
resistência; ponha-se em movimento a máquina de guerra da NATO,
temperada levemente de OSCE, para ter a jeito uns milhares de
homens prontos para o ataque.
De caminho, ainda que esta parte seja opcional, podem ensaiar-se
uns alegados massacres de civis como intermezzo que sairão de
cena na hora exacta em que aparecerem os especialistas
internacionais cujo veredicto ninguém se deverá dar ao trabalho
de reproduzir.
Com os ingredientes devidamente condimentados por umas ameaças
de Solana, umas advertências de Chirac e uns ultimatos de
Christopher Hill, arregimente-se de novo a comunicação social
para apimentar a entrada das partes beligerantes no forno, isto
é, em Rambouillet.
Chegados a este ponto sensível, cabe aos negociadores
internacionais trabalhar em separado cada uma das partes, para o
que dispõem de sete, dez ou mesmo quinze dias, tudo dependente
da evolução do cozinhado até ao fim da primeira semana de
retiro castelar. A intervenção dos especialistas é nesta fase
crucial, para o que não devem ser poupados esforços nas idas e
vindas entre os andares destinados às partes, de forma a
garantir a harmonização do produto final. Trancados no castelo
e com uma margem de manobra de 20 por cento, é suposto os
ingredientes não estravazarem as respectivas competências,
cabendo-lhe apurar vírgulas e enfeites que não ponham em causa
o preparado cozinhado a priori. Como o segredo é a alma do
negócio, até lá não deve ser permitido o contacto das partes
com a imprensa, não vá a coisa azedar.
Ao contrário do que costuma suceder no Vaticano, não é
aconselhável que a conclusão do prato, isto é, do acordo, seja
anunciada com fumo branco, que correria o risco de ser confundido
com branqueamento de um eventual esturro. De preferência, o
cozinhado deve ser apresentado ao mundo com pompa e
circunstância através dos media, com sorrisos e apertos de
mão, rubricas em livro de actas e trajes a rigor.
O prato serve-se frio, orquestrado pela NATO, mordomos da ONU
acessorados pela OSCE e aplausos da comunidade internacional, sob
o olhar complacente de Clinton aliviado por se afastar,
temporariamente que seja, da Casa Branca.
Se lá para as bandas da Jugoslávia o apetite for escasso,
Solana deve providenciar uma pulverização aérea do sucedâneo
moderno do óleo de fígado de bacalhau.
No menu, é de bom tom não esquecer de referir que a gerência
não se responsabiliza por eventuais futuras dores de barriga.
Anabela Fino