Ensino recorrente
«O que devemos defender
é uma segunda oportunidade para todos»

Entrevista com António Anes
conduzida por Lígia Calapez


Números divulgados pelo Ministério da Educação indicam que a percentagem de insucesso dos alunos do secundário no ensino nocturno é de 99%. São dados que põem em causa um sistema que, ao longo destes anos, teve inevitáveis reflexos na vida de muitos jovens e adultos. O que está em causa é também gente muito concreta, percursos, perspectivas de vida. Que não são considerados.
Sobre os dados da avaliação agora feita e as medidas propostas pelo governo, o «Avante!» foi ouvir António Anes, membro do secretariado da Fenprof.


«Avante!» Os números divulgados sobre o insucesso dos alunos do secundário com ensino nocturno são impressionantes. Qual o historial do sistema adoptado e que se traduz num abandono quase total?

António AnesAntes da generalização do sistema de ensino por unidades capitalizáveis, já havia alguns anos de experiência – no terceiro ciclo, uma experiência de 10 anos – e já então se tinha verificado que este sistema enfermava de algumas fragilidades.
A sua generalização - primeiro ao nível do terceiro ciclo e depois do secundário - foi o caos.
Em 1996, quando o Ministério da Educação (ME) optou por generalizar o sistema ao secundário, onde entretanto havia uma experiência de cerca de dois anos, já se faziam sentir muitos problemas. O ME nem sequer avaliou esta experiência - que deveria ter sido pensada e amadurecida - antes de proceder à generalização do sistema. Teimou em generalizá-la e os resultados estão à vista.
Já então a Fenprof tinha levantado todos os problemas que agora são referidos com esta avaliação. Tínhamos esboçado um retrato impressionista – com base nas experiências das escolas e em encontros realizados com professores - e alertámos o Ministério da Educação, defendendo que este sistema não satisfazia estes alunos. Um alerta que foi ignorado.
A verdade é que, quer os alunos compulsivamente transferidos do dia para a noite, quer mesmo os que, sendo já adultos ou porque estão a trabalhar, procuram uma segunda oportunidade – têm necessidade de um outro sistema, de uma forma de ensino regular. Necessitam ainda de alguma exposição das matérias, de ajuda por parte do professor.
Ora, o sistema de unidades capitalizáveis, obriga a que os alunos tenham uma grande individualização e até um controle da sua própria aprendizagem. Poucos são os alunos que estão preparados para isso.

— O que é o sistema de unidades capitalizáveis?

Neste sistema, as aprendizagens estão organizadas, em cada disciplina, por blocos. Ao fim de cada bloco, o aluno propõe-se para fazer exame. Os blocos são equivalentes às unidades em que está organizada a aprendizagem no ensino regular.
São seis ou sete disciplinas. Cada disciplina tem doze unidades. Cada unidade, um exame no final. E isto multiplica-se e corresponde a umas dezenas de exames ao longo de um determinado curso. Os alunos só passam à unidade seguinte, se tiverem aprovação na primeira unidade.
No ensino regular temos um processo de avaliação contínua. Há tempo para nos debruçarmos sobre atitudes de aprendizagem. No sistema de unidades capitalizáveis, há apenas uma avaliação dos conhecimentos mais cognitivos. Se os alunos não têm um bom ritmo de aprendizagem, não conseguem acompanhar este sistema. De facto, só um ou dois consegue autonomizar-se e concluir assim o curso.

— Como é que funciona, na prática, o sistema?

Cada professor, na melhor das hipóteses, trabalha com três ou quatro unidades numa sala de aula, num total de vinte ou trinta alunos. Isto no início dos cursos.
O que se passa na prática?
A nível de aprendizagens, numa aula de 45 minutos, com três ou quatro grupos, um professor não consegue repartir o tempo por estes grupos, mesmo admitindo que os alunos consigam agarrar numa ficha, num documento, e trabalhar sozinhos. O que não é real, tanto mais que os próprios guias não individualizam aprendizagem.
Tenho uma reflexão muito negativa em relação a estes guias de aprendizagem que, no fundo, são os manuais das unidades capitalizáveis. Em geral os guias são blocos de documentos, com uma série de perguntas à volta daquele documento e, por vezes, nem a própria informação do documento é adequada à pergunta que se faz.
É verdade que o ensino nocturno tenderá sempre a ter um certo abandono. Os alunos são adultos que têm os seus ritmos, os seus empregos, o que por vezes dificulta o ir às aulas e, naturalmente, há os que acabam por desistir. Já assim acontecia no sistema regular nocturno. Mas este sistema aumentou assustadoramente as taxas de desistência.
Com o sistema de ensino regular, começávamos com uma turma com 20/25 alunos e terminavam pelo menos 10/15 alunos. Com o sistema actual, houve anos em que começávamos com 20 ou 30 alunos e, ao fim do primeiro período, já estávamos só com um ou dois alunos. Era um abandono completo em relação às aulas.

— Quando é que a Fenprof começou a alertar para esta situação?

Em 1996 começámos a alertar para o problema que já então se estava a verificar – o abandono assustador dos alunos. Em experiências anteriores também havia abandono. Mas não nestas proporções.
Depois de termos reunido com cerca de 50 escolas e sensivelmente 150 professores, entregamos as nossas conclusões ao Ministério da Educação, pedimos uma reunião, informamos sobre esta situação.
Na altura nem pedimos muito. Apenas que não se avançasse com este sistema para o ensino secundário, tendo em conta a experiência que já estava a decorrer neste ciclo. E que, naturalmente, se avaliasse também o básico.
O Ministério decidiu generalizar o sistema em 96, andou estes três anos a tentar fazer um estudo de avaliação, para agora comprovar todas as situações que já então tínhamos denunciado.

— Nestas circunstâncias, como comentar os dados agora divulgados pelo ME?

O Ministério levanta os problemas realmente existentes no ensino recorrente ao nível do básico e do secundário, constata que o sistema entretanto implementado está a provocar muito abandono, faz uma avaliação que regista de facto estes problemas.
Mas, qual é a solução apresentada? A solução que encontra é muito redutora e marcadamente economicista.
Em síntese, considera que este sistema está a dar muito prejuízo, que as escolas que estão a funcionar têm lá muitos professores, muitos funcionários, há muito gasto de luz, e os alunos não querem aproveitar... Então, vão-se fechar escolas à noite, concentrar recursos em determinadas áreas, e assim economizar em relação ao ensino recorrente.
Claro que não concordamos com esta perspectiva economicista.

— Como avalia a Fenprof esta perspectiva?

Não concordamos com esta perspectiva, porque pensamos que ela não vai oferecer a segunda oportunidade ou, pelo menos, não a vai provocar. E eu penso que a oferta de uma segunda oportunidade deveria mesmo ser provocada por parte do ME, por parte do governo.
Fechar escolas, como tudo indica irá acontecer, ao arrepio das próprias escolas, vai levar a uma diminuição da oferta de uma segunda oportunidade. Não é esta, certamente, a forma de recuperar alunos que entretanto abandonaram o ensino.
Pessoalmente não defendo que os alunos, porque têm problemas no ensino tradicional, precisem de um novo sistema. O abandono escolar não tem só a ver com o sistema de ensino. Há um conjunto de outros factores que levam ao abandono escolar.
Quando alguém procura o ensino recorrente, não o faz porque procura um novo sistema, mas por outras motivações. Por razões de trabalho, por melhores perspectivas a nível laboral e às vezes, também para adquirir novos saberes.
Muitos milhares de alunos se formaram à noite neste quadro.
Naturalmente, se arranjarmos um sistema que melhor recolha e valorize as experiências dos alunos da noite, tanto melhor.

— O ensino regular nocturno é uma melhor opção?

Antes do mais, queria salientar um facto – avaliaram o sistema de unidades capitalizáveis, mas não o compararam com o ensino regular nocturno, que ainda hoje existe em determinadas franjas, nem com as experiências anteriores à generalização do actual sistema. Na avaliação agora publicitada, falta este estudo.
Assim se poderia comparar e avaliar se o ensino regular nocturno terá melhor aproveitamento. E a meu ver, tem.
Na verdade os alunos necessitam das aulas. A própria existência de turma, com actividades mais regulares, com uma avaliação mais contínua, provoca uma aproximação entre os alunos, que no sistema de unidades capitalizáveis desaparece. O sistema de unidades capitalizáveis anula o grupo/turma. Cria uma individualização tal, em que cada um procura o seu ritmo, que leva ao desfasamento do grupo/turma.
Em termos comparativos, no ensino regular, havia um grupo de 9/10 alunos que ficavam até ao fim. Com o sistema de unidades capitalizáveis, os dados falam por si. É uma situação de abandono total, como aliás já antes tínhamos denunciado.

— Em relação à proposta actual do Ministério, que outros aspectos haverá a referir?

Em relação a esta nova proposta do Ministério, penso que antes do mais há que referir que esta Secretaria de Estado marginaliza as organizações sindicais de professores. Não se compreende que neste processo, tenham sido ouvidas, e justamente, a CGTP e a UGT, como representantes de trabalhadores que também são potencialmente estudantes-trabalhadores, mas não os sindicatos de professores.
A única vez que fomos recebidos, foi em 96, quando pedimos uma audiência e entregámos uma moção, que alertava para os riscos da generalização do sistema das unidades capitalizáveis. Sem resultados.
Entretanto, o ME não ouviu as estruturas representativas dos professores nem deu às escolas a oportunidade de serem consultadas sobre este processo, quando se admite mesmo a hipótese de encerrar cursos nocturnos.
Em relação às medidas que vão ser adoptadas, começo por salientar a decisão de, a partir de agora, serem as escolas a candidatarem-se a cursos de ensino recorrente.
Penso que a responsabilização das escolas é salutar, mas poderá conduzir a uma desresponsabilização do Estado. Neste caso, pode tratar-se de uma tentativa de responsabilização das escolas, de passar para as escolas o ónus dos problemas.
Por outro lado, é possível que se trate também de uma tentativa de abrir ao ensino particular a possibilidade de avançar com o ensino recorrente nocturno, podendo o Estado oferecer-lhe condições e apoios económicos.
Não é certamente por essa via que se poderá oferecer uma segunda oportunidade, muito mais generalizada, a todos os que a procuram.
Não é fechando as escolas, por vezes num raio de 20 quilómetros, não é reduzindo a oferta pública, que se irá motivar a matrícula de novos alunos.

— O que é que a Fenprof proporia para que o ensino recorrente fosse a tal segunda oportunidade, que claramente não é?

O que devemos defender, é uma segunda oportunidade real.
Não só através dos cursos profissionais, que têm também o seu lugar e o seu papel. Mas uma segunda oportunidade para quem não concluiu um determinado curso durante a escolaridade obrigatória e deve ter a possibilidade de o concluir mais tarde.
Antes do mais, as escolas devem ser ouvidas e deverá ser permitido, a todas as que o queiram, fazer a sua candidatura. A oferta deve corresponder às necessidades.
Por outro lado, haveria que reorganizar o sistema, mantendo o ensino regular, presencial, também para os alunos da noite, de par do sistema de unidades capitalizáveis - o que poderíamos considerar como um sistema misto.
O ensino regular para os alunos que têm dificuldade na organização da aprendizagem, que queiram um regime presencial, queiram ir às aulas, com um sistema de avaliação da aprendizagem mais contínuo.
Para os alunos que tenham a necessária capacidade de individualização, e que o próprio trabalho, a vida familiar, não lhe permita ir com regularidade às aulas, manter-se-ia o sistema de unidades. Com aulas de apoio que, para estes alunos, que queiram fazer um percurso individualizado, são fundamentais.
Penso que este sistema misto seria actualmente a melhor maneira de combater o abandono e o insucesso no ensino recorrente.

No ensino recorrente, há os adultos ou jovens adultos que começaram entretanto a trabalhar ou abandonaram a escola por outras razões, mas há também os mais jovens, que tiveram alguma repetência no ensino regular e por isso foram enviados para os cursos nocturnos. Para estes, qual seria a resposta mais adequada?

Esse não é um problema de agora. Mas actualmente é mais acentuado, pois há muito a prática de transpor alunos com dificuldades para a noite.
Parece-me óbvio que, para estes alunos, compulsivamente transferidos para a noite, a oferta de uma outra oportunidade, deveria ser-lhes dada de dia. Mas não com o sistema de unidades capitalizáveis, como o Ministério da Educação parece agora pretender fazer, apesar de tal sistema ter provocado todo este abando.
A pedra angular é - uma segunda oportunidade generalizada, oficial, que se deve oferecer a todos. Quanto mais escolas a oferecerem, tanto melhor.
É essencial ponderar o sistema. É preciso compreender porque falha. E, a meu ver, ele falha, entre outras coisas, por via de aprendizagens que não estão bem estruturadas, por falta de formação de professores, por os guias não estarem bem estruturados, porque os blocos programáticos também estão de certa forma desfasados do ensino regular.


«Avante!» Nº 1315 - 11.Fevereiro.1999