A festa de todas as músicas

No conjunto de espectáculos da Festa do «Avante!» deste ano, especiais atenções foram naturalmente despertadas pela programação musical no imenso e sempre renovado público que ia lotando por completo, em sucessivas revoadas, o espaço frontal ao Palco 25 de Abril, logo no dia seguinte ao grande êxito do espectáculo «Canções de Atalaia».

Os espectáculos tiveram início no sábado, pelas 15.30, com a tradicional presença da música de África. Desta vez, os Black Feeling serviram de fundo instrumental à voz do solista principal, Fernando Carvalho, um dos mais destacados nomes da música popular da Guiné-Bissau, que apresentou uma série de canções provenientes do seu país e de outros países da lusofonia. Mas outros dois espectáculos importantes preencheram a programação musical até cerca das 20 horas. Primeiro, foi a vez de Carlos Mendes que assim regressou a um palco que bem conhece e onde aproveitou para recordar e revisitar o seu repertório, centrando embora a actuação no seu mais recente trabalho discográfico – Vagabundo do Mar – tendo o público reconhecido as canções para poemas de Manuel da Fonseca, Joaquim Pessoa, José Fanha, Ary dos Santos ou Sofia de Mello Breyner Anderson. Depois, num espectáculo onde a coreografia e a dança também tiveram lugar de destaque, o mais conhecido rapper português, General D, foi a voz que mais uma vez entoou, de forma incisiva e ritmada, os textos e as canções que nos falam da difícil e dura vida urbana dos nossos dias, divulgando alguns dos temas-chave do novo álbum Kanimambo.

Logo a seguir ao jantar, Janita Salomé foi a voz quente e vigorosa (não isenta dos mais subtis cambiantes) que encheu o palco com a musicalidade incomparável do cante alentejano. «Uma certa forma de cantar» que se reflectiu de maneira por vezes comovente no hábil compromisso entre o brilhantismo da voz solista com o calor colectivo dos grupos corais que o cantor com ele trouxe como convidados de honra: As Camponesas de Castro Verde e os Grupos Corais e Etnográficos da Casa do Povo de Serpa e Os Camponeses de Pias, sem esquecer a importante participação de Vitorino em algumas das canções ou a guitarra de Mário Delgado, o trompete de Tomás Pimentel, as percussões de João Luís Lobo e Ferando Molina e as originais intervenções de um clássico quarteto de cordas. Menina Florentina ou Na Rama do Alecrim competiram assim pacificamente com outras versões, algumas impressionantes, de Romper da Bela Aurora, Extravagante ou Cante Cigano, num desfile pautado pelo elevado bom gosto musical.

Foi esta também, aliás, a «pedra de toque» do espectáculo que se seguiu, novamente com a presença de um cantautor de primeiro plano, igualmente rodeado de convidados de grande qualidade e diversidade estilística, como Né Ladeiras, Amélia Muge, Filipa Pais e, mesmo, Jorge Silva Melo, numa curtíssima intervenção. Jorge Palma construiu, assim, o seu excelente e bem arquitectado recital a partir de um desfile de canções irrecusáveis, deixando apenas para o final a sua própria assinatura (Portugal, Portugal) mas não deixando de imprimir a sua marca inconfundível a melodias e textos da importância de, entre outros, Perfect Day (Lou Reed), Aqui Dentro de Casa (José Mário Branco), Vieux Amants (Jaques Brel), Que O Amor Não Me Engana (José Afonso), A Noite Passada (Sérgio Godinho), Avec Le Temps (Leo Férré), Atrás dos Tempos (Fausto) ou Louvor do Comunismo, Alabama Song e Mack The Knife (Eisler, Weill, Brecht).

E a noite terminaria no Palco 25 de Abril, no maior dos entusiasmos e vibrações, com o impacte vigoroso da música dos britânicos Faithless e da brasileira Márcia Freire. Os primeiros (Sister Bliss, Maxie Jazz, Jamie Catto, Rollo e Dave Randall) demonstraram à evidência porque razão são, hoje em dia, dos grupos mais proeminentes no panorama da música pop actual, expressão flagrante da dance music, com um espectáculo construído na base do best seller «Reverence» e do já muito aguardado «Sunday 8pm». Quanto a Márcia Freire, ela revelou-nos um lado porventura menos conhecido da música popular brasileira, marcada por um ritmo frenético, constante e obsessivo, com uma marcação e movimentação de palco estonteante, cuja origem podemos encontrar nas próprias condições de produção e apresentação habitual da música que nos fez ouvir: a do famoso Carnaval baiano.

A tarde de domingo começaria da melhor maneira, com a presença apelativa de dois outros grupos cuja participação no Palco 25 de Abril já se fazia esperar: «Pó d’ Escrer» e «Los Tomatos». Ou seja, duas expressões musicais completamente distintas. No primeiro caso, e com base em «Resiste», o seu primeiro trabalho discográfico, esteve perante o público o rock urbano reflectindo no vigor dos sons e dos timbres e na crueza dos textos uma das visões musicais possíveis do individualismo da sociedade actual. No segundo caso, foi já a ironia corrosiva a retratar essa mesma sociedade, em canções geralmente divertidas, fortemente ritmadas - até pelas próprias influências musicais que os componentes do grupo evidenciam, como o raggae, o rock, o funk, a salsa - e com uma componente de arranjos instrumentais de assinalável qualidade.

Destaque especial deve ainda ir para a actuação de um grupo sui generis - o «Toca a Rufar», dirigido pelo incansável Rui Júnior - nesta versão composto por mais de duas centenas de jovens percussionistas, divididos em três grupos: um sobre o palco principal e dois evoluindo por entre o público e estabelecendo diálogo rítmico com o primeiro, numa espécie de «chamamento» para a participação no grandioso comício que se iniciaria às 18 horas.

A noite de Domingo, a derradeira da Festa, estaria este ano reservada para a actuação de dois grupos especialmente aguardados e bem recebidos pelo público. Os «Loop Guru» confirmaram a direcção musical que, desde 94/95, estabeleceram para as suas actuações em público e gravações discográficas: a fusão de elementos musicais orientais (em particular da Índia) com a dance music de origem europeia, afloramentos do minimalismo vanguardista e do rock punk, destacando-se a inclusão e manipulação de loops pré-gravados. Pelo seu lado, os portugueses dos «Santos & Pecadores», com a voz poderosa e a ágil movimentação de Olavo Bilac no comando, revelaram-se uma escolha acertada para o encerramento do Palco demonstrando no aprumo instrumental dos arranjos vocais e instrumentais, na encenação dos coros e, em geral, na planificação e alinhamento do seu espectáculo uma crescente maturidade cuja consistência não escapou aos muitos milhares de espectadores que enchiam por completo o recinto.

Francisco Costa


«Avante!» Nº 1293 - 10.Set.98