Memória banida no Chile

Por Zillah Branco



O medo que um ditador tem de um povo consciente e de uma história capaz de despertar a solidariedade internacional levou Pinochet e seus seguidores a tudo fazerem, durante
25 anos, para que a memória chilena fosse apagada. Tal como no Brasil, a ditadura militar fez-se conhecer como uma
«revolução capitalista» e a cultura americanizada foi adoptada como moderna e superior aos valores mais profundos e às imagens tradicionais do país. Como autoritarismo esquecem que a história é um resultado
e que os seus valores foram forjados através dos quatro séculos e meio que fizeram do Chile um país produtivo, organizado, com elevado grau de consciência social e de criatividade em múltiplos sectores, um povo com marcante personalidade.


O neoliberalismo foi implantado ali antes mesmo de se ter desenvolvido na Inglaterra pela mão da Sra. Thatcher. O país serviu de laboratório e recebeu todo o apoio dos Estados Unidos e outros países interessados em transformar as sociedades dependentes em importadoras dos seus produtos e fornecedoras de mão-de-obra barata. Para isso ajudaram a criar uma capa moderna para a sociedade – desde linhas de metro até um estrato social da classe média (estilo empresário de sucesso norte-americano) enriquecido e com acesso à ante-sala do poder.
Tendo vivido no Chile durante o período da Unidade Popular e trabalhado ali pela reforma agrária e organização camponesa, aprendi a admirar aquele povo cuja história foi sempre feita de lutas e de elevado sentido de solidariedade. A classe média, social e economicamente muito próxima dos operários e camponeses, preocupava-se mais com a instrução e com a criatividade do que com uma aparência copiada às altas camadas. Vestiam-se sempre com muito apuro mas de maneira sóbria e económica. Habitualmente comprava-se móveis e objectos de uso doméstico nos mercados ou em lojas que os vendiam usados. Tudo era cuidadosamente tratado incorporando novos traços artísticos e muito afecto.
O hábito da leitura fazia do chileno um grande consumidor de livros. Assim foi que a Editora Quimantú, durante o governo de Allende, passou a editar em livros de bolso todo o tipo de literatura clássica em dezenas de milhares de exemplares que esgotavam rapidamente. O mesmo acontecia com os jornais que eram lidos até pelas crianças. As conversas sociais tinham conteúdo, iam muito além das banais observações sobre os factos superficiais. Era uma sociedade enriquecedora mesmo enquanto se cumpria as tarefas domésticas de compra de alimentos e de cuidados com as crianças. As escolas oficiais mantinham os alunos integrados nos trabalhos de conservação das salas e pátios de recreio além de acompanharem de perto os acontecimentos nacionais organizando visitas aos bairros pobres e recolhas de roupa e outros produtos nos bairros ricos. As crianças aprendiam a medir uma melhor distribuição da riqueza e a prestar a sua ajuda aos que mais necessitavam. Os que já tiveram essas experiências sabem a alegria que provocam em quem se sente útil e participante da vida social. Não havia paternalismos, tudo se resumia numa questão de justiça social e de aperfeiçoamento da distribuição dos recursos. Esta era a escola das crianças e de todo o povo chileno.
A brutalidade do golpe fascista de Pinochet, apoiado pela CIA e secundado pelos fascínoras que assassinaram os seus opositores e destruíram as conquistas populares, não foi suficiente para apagar o significado do governo Allende. Aquele episódio histórico tinha raízes profundas nas lutas dos mineiros, dos camponenses, dos indígenas, dos educadores, das mães chilenas. Não foi um programa político superficial com pequenas variações do discurso e das personalidades como o que ocorre sob o domínio da burguesia capitalista. Allende terve a corígem de dar espaço à história da maioria chilena até então oprimida pela oligarquia. E o sentimento de libertação despertou a criatividade artística que transformou em música e poesia a consciência popular. Foi o engrandecimento do ser humano, a purificação do seu relacionamento social, o despojar do seu egoísmo, a sua realização humanista plena.
Para destruir essa memória seria necessário muito mais que exterminar os seus líderes e queimar os seus livros. Pinochet foi buscar os exemplos fascistas de dominação dos povos quando eram proibidas as expressões da cultura do vencido. Sem poder substituir o idioma nacional, mudou o ensino, proibiu textos, baniu palavras e músicas, inventou novos significados deturpando velhos conceitos, impôs um modelo estrangeiro como superior, enterrou a história. Em 25 anos cresceu uma geração condenada a nada saber do passado heróico do seu povo e a atribuir as suas dificuldades presentes aos pais que estiveram comprometidos com a luta. Além dos crimes hediondos cometidos pela ditadura de Pinochet ainda sobressai o da tentativa de destruir os bons sentimentos de um povo, a identidade de uma nação, o afecto e respeito pela família e pela história pátria.


A emoção do reencontro

Durante muitos anos evitei voltar ao Chile. Tinha medo de enfrentar a tristeza que me ficara gravada com os bombardeios, as mortes, as torturas, os desaparecimentos de amigos, as brutalidades policiais que presenciei em 1973.
A primeira visita ao centro da cidade foi dolorosa. Diante do palácio de «La Moneda» revia o horror das bombas, as pessoas correndo em pânico à procura de abrigo e dos seus filhos que haviam ido à escola, o sacrifício de Allende, a vitória do inimigo animalizado pelo ódio. As recordações são feitas de cenas, ruídos, cheiros, sentimentos. Não são quadros estáticos. Relacionam-se com outros acontecimentos. Aquela mesma praça fazia-me lembrar a fitura do general Carlos Prats, dois meses antes do golpe de Pinochet, descendo do seu carro com uma metralhadora pequena e desarmando cinco tanques que ameaçavam o palácio do Governo num primeiro intento golpista. O povo todo acorreu numa manifestação entisiástica onde surgiu pela primeira vez a mensagem «soldado, amigo, o povo está contigo», que foi aplicada em Portugal em Abril do ano seguinte.
Eu via com consternação todas as alterações fisicas da cidade feitas para apagar o passado. Uma horrível torre iluminada dominando com a sua arquitectura incompatível o cenário antigo do centro de Santiago. Nos jardins do palácio dos presidentes foram homenageados com a colocação dos bustos: Alessandri e Frei, os que antecederam Allende. Naturalmente o visitante pensa naquele que foi morto ali e a quem, por medo, ainda negam a homenagem. Aos poucos comecei a perceber as fissuras daquela imagem de força golpista e tratei de procurar a memória do Chile que conheci e sempre amei.
Percorri as ruas onde o comércio mais pobre permanece. Dezenas de lojas de roupas usadas hoje anunciam a origem do produto: Europa, Canadá, Estados Unidos e outros. Chegam constantemente toneladas de roupas usadas. Como se estrutura este comércio que nos países de origem não são visíveis? Há muitas áreas económicas informais que não são contabilizadas.
Prestei atenção às pessoas da classe trabalhadora que conservam as mesmas maneiras de há 25 anos apesar de jovens, vestem-se com a mesma simplicidade sem se preocuparem com a moda. A diferença que notei foi na tristeza e no aparente desinteresse por temas que não os do seu trabalho imediato. No hotel, ao pedir uma lista telefónica para encontar o endereço de um Partido (sem dizer qual), recebi a lista com o comentário seco: «Este é um tema que não me agrada.» Há muita gente apavorada, principalmente os que trabalham no turismo ou no Estado.
O desenvolvimento nacional começa a tropeçar nos problemas criados pela ditadura. Além de uma pretensa democracia apresentada aos visitantes por funcionários amedrontados, o turismo sofreu um rude golpe com a revelação de que as fronteiras do Chile com a Argentina, com a Bolívia e o Peru estão minadas. Depois de alguns acidentes fatais nos parques nacionais de Lauca, Salar de Surire, Los Flamencos, Llullaullaco (frequentados por turistas nacionais e estrangeiros), o exército confessou que ali existem 500 mil minas antipessoais armadilhadas. Diante do elevado custo (dezenas de milhões de dólares) para a retirada das minas que só poderia ser feita em 20 anos, o responsável dos parques concluiu: «São poucos os casos de acidente para tão elevada despesa. O melhor será vigiar a zona.» Na TV apareceu um jovem que pensa de maneira oposta por haver perdido os movimentos de um braço com a explosão de uma mina. Mas o que interessa aos herdeiros de Pinochet que existam Direitos Humanos e proibição internacional de terrenos minados se estão com o comércio exportador de fruta em ascensão e as rodovias privatizadas e melhoradas?


Contrastes

Conheci um professor universitário de Ciências Políticas. Jovem de 35 anos disse ter estado no Partido Comunista mas que saiu «à esquerda», distinguindo-se de outros que saíram «à direita» e hoje estão no governo. Senti um certo cansaço ao lembrar este filme... E ele não se dava conta de que saiu «à esquerda da direira que saiu antes». Reclamava um comportamento revolucionário ao PCCh e um projecto próprio. Perguntei qual seria e ele respondeu que deviam reflectir. Lembrei-me do actual Presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, no mesmo papel quando jovem.
Para não alimentar a tristeza deste último encontro, saí à procura de prendas para os netos com os símbolos da cultura chilena. Não encontrei. Numa loja reclamei da falta dos desenhos típicos do país e a balconista respondeu-me com amargura: «Lamentablemente no hay.» Estranhei que uma jovem de 30 anos (portanto 25 desde o Golpe), numa loja quase luxuosa, sentisse a falta da antiga imagem do Chile. «Tenemos la memória en el corazon, nuestras famílias conservan la história en la casa. Somos obligados a vestir como ellos con los colores de ellos. Pero somos chilenos como antes. Us ted pude estar tranquila que como yo hay mucha gente». Fiquei emocionada e ela também.
Comecei a ver Santiago com outros olhos, com esperança. Mesmo com as mudanças que apagaram a liberdade de cada um e que impuseram um novo ritmo nervosinho nas ruas tornando impossível a antiga prática de se fazer malhas nos autocarros ou nas filas (que em Lisboa também havia e desapareceu), em casa as famílias cultivam a história e a personalidade nacional. Conseguiram apagar apenas a fachada mas não a memória do verdadeiro Chile. Mantém-se clandestina a cultura Nacional. E não é por acaso que os jovens comunistas estão vencendo todas as eleições nas associações estudantis.


«Avante!» Nº 1284 - 9.Julho.98