EM FOCO


Santiago Alvarez em Portugal


Em cinema
a realidade constrói-se



Cronista da Revolução Cubana é uma das definições com que o cineasta Santiago Alvarez se tornou mundialmente famoso, a par de «mestre do documentário» ou «inventor do vídeo clip». Em qualquer dos casos, e ao longo de uma aventurosa carreira de repórter-cineasta que o levou a quatro dos cinco continentes, a vasta cinematografia documentarista de Alvarez acabou por se impor como uma referência na cultura deste século, apesar de produzida em Cuba e, por isso mesmo, postergada dentro do mercado fílmico mundial por pressão norte-americana. A sua extraordinária reportagem filmando ao vivo o primeiro bombardeamento de Hanói em 1967 é apenas um, entre muitos exemplos, de documentários jornalísticos que abalaram o mundo e os próprios EUA, apesar destes controlarem ferozmente as grandes cadeias de informação e quase todos os circuitos de distribuição cinematográfica.
Graças à Cinemateca Nacional, a obra de Santiago Alvarez chegou finalmente ao nosso País, através de um ciclo que, durante cinco dias, mostrou algumas obras mais impressivas do autor, incluindo uma reportagem sobre o 25 de Abril filmada ao vivo e, até agora, incrivelmente inédita no nosso País... O artista esteve entre nós, presidiu à abertura do ciclo e mereceu, finalmente, a atenção dos órgãos de comunicação social portugueses. Resta saber por quanto mais tempo é que a RTP, canal público de televisão, prosseguirá o absurdo de ignorar a obra de um homem que não apenas fez escola, como marcou determinantemente a reportagem cinematográfica e televisiva em todo o mundo.


Meses depois da vitória da Revolução sobre a ditadura de Fulgêncio Baptista, foi criado em 1959 o Instituto Cubano da Arte e da Indústria Cinematográfica (ICAIC). Santiago Alvarez assumiu de imediato a responsabilidade da realização de noticiários e documentários, mantendo-se durante 37 anos consecutivos à frente do ICAIC. É ali que constrói o seu impressionante currículo, trabalhando em Cuba e pelo mundo inteiro. Ainda que resumidamente, salientemos alguns aspectos da sua obra.
Realizou pessoalmente o impressionante número de 600 noticiários, num total de 1500 edições do Noticiário ICAIC Latino-americano, que igualmente dirigiu.
Realizou 96 filmes e três vídeos de variada duração, integrando fundamentalmente documentários, mas também ficção (Los Refugiados de la Cueva del Muerto, filmes de animação, Los Dragones de Halong, etc.
A câmara de Santiago Alvarez percorreu as Américas, África, Ásia e Europa e filmou numerosas personalidades internacionais, em muitos casos com registos únicos e sempre numa abordagem original. Entre os seus entrevistados estão nomes como os de Che Guevara, Fidel Castro, Ho Chi Minh, João Goulart, Oscar Niemayer, Salvador Allende, Samora Machel, Stokeley Carmichael, Vitor Jara, etc.

Considerado, inquestionavelmente, um dos maiores documentaristas da história contemporânea e deste século, Santiago Alvarez testemunhou, filmou e produziu pioneiramente numerosos episódios históricos da segunda metade deste século, onde há a destacar toda a crónica da Revolução Cubana desde 1960, num monumental fresco que chega aos dias de hoje, as guerras do imperialismo norte-americano contra o Vietname, o Laos e o Camboja, a ascensão e queda da Frente Popular de Salvador Allende, no Chile, e as lutas tardias de independência em África, nomeadamente em Angola e Moçambique.
À semelhança dos melhores documentaristas deste século, Alvarez é um perito na arte da montagem, onde a imagem e a banda sonora são ambas decisivas para a construção do discurso fílmico. No seu livro sobre o artista, Amir Labaki afirma que «a articulação de todos os elementos num discurso coerente, directo e panfletário, realiza-se através de um inventivo e meticuloso trabalho de montagem», trabalho onde Alvarez, «a partir de imagens de origem heterogénea, constrói um discurso militante homogéneo».
Aliás, Santiago Alvarez já explicou que «a razão de tanta inventiva é a necessidade». Fustigado por carências materiais e documentais de toda a ordem - fruto do monstruoso bloqueio que os EUA continuam a impor a Cuba - Alvarez cedo se habituou a contornar a falta de meios com a exuberância da criatividade. Daí que a música desempenhe, frequentemente, o papel de guia dramático nos seus trabalhos, a par de uma originalíssima montagem de imagens e planos muitas vezes desligados ou desgarrados entre si e que, graças às prodigiosas montagens de Alvarez, ganham nexo e constróem o discurso pretendido. Foi este estilo, muito pessoal, que granjeou para Santiago Alvarez a fama e o mérito de ter criado a estética e a técnica do vídeo clip, hoje usado e abusado no mundo inteiro.


A neutralidade não existe

O cinema documental de Santiago Alvarez sempre tomou partido, frontalmente e sem tergiversações, afrontando as presunções da chamada escola «neutral» que esconde por trás de uma pretensa «objectividade» da câmara a ideologia inerente a qualquer discurso. Para esses detractores, Alvarez tem uma resposta lapidar: «em cinema, a realidade não se capta, constrói-se». E cada qual constrói a sua, na incontornável subjectividade humana. Só que Alvarez fá-lo assumidamente, afirmando o seu ponto de vista histórico, político, ideológico e social, ao invés de tantos outros que, a coberto duma mítica neutralidade das imagens que captam e montam, compõem igualmente os discursos sobre a realidade que pretendem difundir, sem contudo o admitirem.
Como assinalava o Programa da Cinemateca Portuguesa na sua homenagem, «Alvarez renovou e enriqueceu o difícil domínio da propaganda revolucionária, em alguns dos filmes militantes mais célebres e originais dos anos 60, como Now (canto à luta dos negros norte-americanos), LBJ (arrasador libelo contra o presidente Lyndon Baines Johnson) ou 79 Primaveras (homenagem a Ho Chi-Min)». «Sempre como testemunha de lutas políticas, mas também de manifestações artísticas e culturais, como a música e a dança», a obra de Alvarez é a «de um cineasta fecundo e exigente, que elevou o cinema revolucionário à categoria de obra de arte».
Foram precisamente estas três obras que abriram o ciclo, juntamente com Hanoi Martes 13, e quem teve oportunidade de as ver saiu deslumbrado. Now - uma colagem de animação de seis minutos realizada a partir de fotos tiradas por todo o lado e conduzida por uma canção - é uma denúncia tão eficaz contra o racismo e a repressão sobre os negros nos EUA, que o pequeno filme foi, na época, proibido em vários Estados do Sul do país. Quanto a Hanoi Martes 13 é, nem mais nem menos, que a reportagem ao vivo do primeiro grande bombardeamento aéreo ordenado pelo presidente Lyndon Johnson sobre Hanói, conseguindo Alvarez o prodígio de contar, sem palavras e em 30 minutos, o que foi a resistência do heróico povo vietnamita e a selvática agressão do imperialismo norte-americano.


«Vão ao cinema»

Tivemos uma curta conversa com Santiago Alvarez, que nos recebeu na embaixada de Cuba em Lisboa. Falou-nos do seu último documentário, terminado há semanas em Cuba e tratando do drama da SIDA, anunciou-nos o seu próximo projecto, que se chamará «Os Homens que Conheci» ao longo duma carreira de 37 anos de jornalismo cinematográfico e, pelo meio, foi-nos respondendo a algumas questões.

«Gosto de viver a História», explicou Alvarez, acrescentando que «não vim por coincidência a Portugal filmar a Revolução do 25 de Abril. Estava em Espanha, onde se vivia uma realidade parecida com a portuguesa, em ambos os países se lutava pela sobrevivência, contra a ditadura, e deslocar-me a Portugal, sobre os acontecimentos, não foi coincidência».

«A decisão rotunda, total, dos vietnamitas em derrotar o imperialismo norte-americano» foi das coisas que mais o impressionou, nas suas andanças pelo mundo como repórter e documentarista e continua a considerar que «em cinema a realidade não se capta, constrói-se». «Quem disser o contrário mente, pois toda a gente pensa subjectivamente!», assinalou, com um sorriso irónico. Chamarem-lhe «o pai do video clip» não o incomoda, antes pelo contrário: «É o reconhecimento de uma realidade de trabalho».

Convocámos para a conversa a importância da banda sonora e da música nos seus filmes e documentários e a resposta veio da seguinte forma: «Povo que não tem música, não fará jamais uma revolução. Ao contrário, os povos que têm a música dentro de si, estão aptos a percorrer os caminhos revolucionários».
«A necessidade aguça o engenho», resumiu também, a propósito dos seus mecanismos de criação que, ao longo de 37 anos, se socorreu de quase tudo o que vinha à mão para cumprir a linha dramática proposta. «O real maravilhoso» tem lugar cativo no seu trabalho, ao mesmo tempo que considera que o documentário continua a ter um lugar fundamental na comunicação entre os homens. O documentário não está, portanto, ultrapassado: «Tenta romper com um passado vicioso», afirma Santiago Alvarez que entende que «há sempre motivos para a renovação».

A sua confiança no povo e na Revolução continua inabalável, afirmando que «a firmeza do povo cubano não nasceu por arte de magia, foi o resultado de um processo eriçado de dificuldades», deixando aos portugueses um conselho: «Vão ao cinema!».