Bielorrússia enfrenta guerra híbrida do imperialismo
IMPERIALISMO Os acontecimentos na Bielorrússia, no seguimento das eleições presidenciais de 9 de Agosto, expõem de forma insofismável a poderosa campanha de ingerência visando abalar e destruir a independência, soberania e, até, integridade territorial do país, precipitando o cenário golpista de mudança de regime há muito acalentado pelos EUA, UE e NATO.
O nível de desigualdade social na Bielorrússia é inferior ao de qualquer país da UE
Assim, uma resolução do Parlamento Europeu (PE) aprovada a 17 de Setembro afirma não reconhecer o novo mandato de Lukachenko, vencedor do pleito com 80% dos votos, cuja tomada de posse teve lugar dia 23 de Setembro. A resolução do PE foi precedida pela declaração do representante para a política externa da UE, Borrel, de não aceitação dos resultados da votação e não reconhecimento da legitimidade do presidente reeleito. Os EUA e a Grã-Bretanha declararam igualmente não reconhecer legitimidade a Lukachenko. Berlim exigiu o início de negociações com a «oposição» e a realização de novas eleições presidenciais.
No final de Setembro, Macron foi a Vilnius encontrar-se com a ex-candidata Tikhanovskaia e avisar que Lukachenko deve sair. O governo da Lituânia antecipou-se à UE na aplicação de sanções à Bielorrússia e reconheceu oficialmente Tikhanovskaia como presidente-eleita. Na mesma toada, o primeiro-ministro da Polónia, Morawiecki, recebeu Tikhanovskaia em Varsóvia com honras de Estado, a quem disponibilizou uma sede para a sua actividade subversiva. O delírio chegou a tal ponto que o governo polaco propôs um plano Marshall para a Bielorrússia. Estes dois países da NATO são a base operacional da trama golpista, cujo formato de blitzkrieg violento foi desfeito na noite de 9 de Agosto nas ruas de Minsk. Os EUA, evitando surgir em primeiro plano na conspiração, desempenham um papel crucial em todo o processo.
É Washington que tutela a agenda da dirigente fantoche Tikhanovskaia e promove com a UE o chamado Conselho Coordenador para a «transferência do poder». Há informação de que desde 2019 os EUA canalizaram para diversas ONG cerca de 20 milhões de dólares com o fim de organizar manifestações antigovernamentais e promover «líderes populares» para o papel de futuros dirigentes da «Bielorrússia democrática». Segundo a Rússia, com este fim, instrutores da CIA e do Pentágono dão treino a nacionalistas radicais no território da Polónia, Geórgia, Ucrânia e países bálticos. Novos financiamentos são prometidos para a paralisação das empresas estatais bielorrussas.
Um guião conhecido
A subordinação directa da Polónia e países bálticos aos EUA e o reforço da presença militar do Pentágono nos seus territórios causa prurido em Berlim e Paris, mas quando se trata de democratizar a Bielorrússia a guerra intestina e divergências com Trump e Pompeo passam para plano inferior.
Salta à vista que a campanha anti-bielorrussa para instigar a dissensão interna e montar um poder paralelo mimetiza a vergonhosa farsa-Guaidó para assaltar o regime constitucional da Venezuela e asfixiar o país. A ofensiva dirigida pelos EUA, inspirada nos manuais da «guerra híbrida», mobiliza recursos nos planos político, diplomático, mediático, económico, cultural e militar para incentivar a agitação interna e o desgaste económico e social na antiga república soviética. A derrota do primeiro assalto obrigou à alteração do guião, passando a projectar-se a realização de marchas pacíficas, acções de desobediência espontâneas e a preparação para um quadro prolongado de tensões e desestabilização, espreitando sempre a possibilidade de subir a parada golpista. Os objectivos permanecem imutáveis e visam não apenas a invalidação dos resultados eleitorais apurados, mas o derrube da própria ordem constitucional e a entrega do poder aos títeres do imperialismo.
A tentativa mascarada de golpe de Estado colhe particular inspiração nos acontecimentos da Maidan na Ucrânia, de tão deploráveis e trágicas consequências para os destinos do país vizinho. Se dúvidas houvesse da natureza do processo que levou à consumação do golpe de Fevereiro de 2014, o seu cariz marcadamente antipopular foi confirmado pela fascização do poder da Junta golpista de Kiev e o desatar da guerra no Donbass. A que se seguiu a aplicação de sucessivas medidas de austeridade impostas pelo FMI, o aprofundamento do curso privatizador e de claudicação da soberania nacional.
Ingerência e manipulação
Na Bielorrússia, independentemente dos problemas e razões de insatisfação que tenham lugar, também existe uma base social interna composta por sectores da burguesia nacional particularmente permeáveis à instrumentalização e articulação externas que protagonizam a actual campanha anti-nacional. O seu núcleo duro pretende mais espaço económico e influência social e a plenitude do poder político. Na pugna em curso, os sectores mais obscuros da sociedade, incluindo forças ultranacionalistas e neofascistas, são arregimentados e colocados ao serviço do programa golpista.
A ter sucesso tal operação, por muito que hipocritamente se reclame de democrática e pacífica e se pretenda camuflar sob a capa das aspirações difusas e sentimentos de protesto de jovens e mulheres que se manifestam, em especial, nas ruas de Minsk, significaria a perda da independência e soberania nacionais e um real retrocesso democrático, dos direitos básicos e nível de vida da esmagadora maioria do povo trabalhador. A mega-operação de manipulação, de evidente conteúdo reaccionário e antipopular, aspirando à filiação na ordem das revoluções coloridas, nada tem na sua essência de revolucionário.
A sua agenda é porém ambiciosa. O triunfo da ingerência do imperialismo na Bielorrússia resultaria na entrega à devassa do grande capital dos sectores estratégicos da economia, lançando o país na onda privatizadora travada ainda nos sombrios anos 90, após o fim da URSS. O resultado seria, como se vê pela experiência vizinha da Ucrânia e países bálticos, a destruição da moderna agricultura e indústria bielorrussas e a inclemente abertura e desregulamentação do mercado interno. No plano geopolítico, o imperialismo pretende esvaziar os importantes laços de cooperação económica e o quadro de relações estreitas existente com a Federação Russa, a par das principais dinâmicas de cooperação no espaço pós-soviético. E ainda o desenvolvimento das relações soberanas e mutuamente vantajosas da Bielorrússia com a China e outros países do mundo.
O reconhecimento deste facto não descarta o calculismo político e agenda própria do capitalismo russo na relação com Minsk.
Soberania e progresso
Como se vê pela crescente acção provocadora da NATO junto às fronteiras da Bielorrússia e Rússia, os círculos dominantes em Washington e principais capitais da velha Europa não desistem da via de expansionismo e pressão contra a China e Rússia, apesar do clima de quezília transatlântica e do agravamento de contradições e rivalidades decorrentes do quadro de profunda crise estrutural capitalista. Neste sentido, a Bielorrússia constitui uma plataforma por excelência para pressionar a Rússia e a via mais rápida conducente a Moscovo.
É também neste âmbito que se insere a campanha de revanchismo e falsificação histórica em torno da II Guerra Mundial – veja-se a utilização pela oposição dos símbolos conotados com a dominação lituana em tempos recuados da história e, sobretudo, a ocupação nazi de 1941-44 –, servindo os objectivos belicistas da estratégia imperialista que hoje procura converter a Bielorrússia em testa-de-ponte de novas provocações e aventuras na confrontação com a Federação Russa, à semelhança do ocorrido na Ucrânia. Ganha pois sentido a advertência de Lukachenko, em entrevista à imprensa russa, de que «se o país cair, a seguir cai a Rússia»[1].
A campanha do imperialismo contra Lukachenko e o modelo de desenvolvimento soberano bielorrusso não é nova, remontando praticamente à sua chegada ao poder em 1994. Desde então o país seguiu um caminho único no espaço da ex-URSS, em contra-ciclo com as reformas de «terapia de choque» aplicadas por Iéltsin na Rússia. Por isso Lukachenko foi apelidado pelo imperialismo de «último ditador da Europa» e a Bielorrússia caluniada e sujeita a sanções.
Não importam as calamitosas consequências da restauração capitalista na ex-URSS e Europa Oriental, descritas num relatório da ONU de 1999 em que se afirma «ser difícil imaginar que algo similar pudesse alguma vez ter acontecido em tempo de paz». Na Rússia, em particular, «vários milhões de pessoas não sobreviveram à década de noventa o que teria acontecido se o nível de esperança de vida de 1990 tivesse sido mantido». A conclusão geral refere que a «transição» [para o capitalismo] teve «consequências devastadoras para o desenvolvimento humano»[2].
Ao invés, a Bielorrússia rejeitou as desastrosas receitas de classe do FMI, alcançando notáveis resultados. Triplicando o PIB entre 1995 e 2005, foi o primeiro país no espaço pós-soviético a restaurar o nível económico de 1990[3]. Logrou-o impedindo a privatização e destruição dos principais sectores da economia, das cooperativas e explorações agrícolas às grandes empresas industriais. A propriedade pública foi mantida nos sectores produtivos estratégicos e retomada a elaboração dos planos quinquenais, aprovados em Assembleia Popular nacional realizada a cada cinco anos. Os níveis de pobreza e desemprego são baixos e a educação e saúde gratuitas. Um artigo da agência Bloomberg, insuspeita de simpatia pelo modelo bielorrusso, não esconde que a rejeição das privatizações nos anos 90 preveniu a emergência da oligarquia e salienta que o nível de desigualdade social na Bielorrússia é inferior ao de qualquer país da UE[4].
Construir o futuro
Lukachenko já admitiu ter permanecido demasiado tempo no poder. Apoia a aceleração do processo de reforma constitucional e elevação do papel dos partidos. É-lhe apontado o erro de se ter suportado demasiado no aparelho administrativo e não nos trabalhadores.
Na presente encruzilhada, os desafios são pois enormes para os comunistas e patriotas bielorrussos. A afirmação e fortalecimento da consciência e organização da classe operária e dos trabalhadores, como elemento determinante da necessária mobilização e participação populares, é um factor crucial para a defesa da soberania e prossecução do caminho de desenvolvimento na nova etapa que se abre. A construção do futuro na Bielorrússia passa por desmascarar e derrotar a ingerência imperialista e seus propósitos golpistas.
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1) 09.09.2020, https://russian.rt.com/ussr/article/781543-lukashenko-intervyu-polnyi-tekst
2) UNDP, Transition 1999: human development report for Europe and the CIS
3) Roy Medvedev, Aleksandr Lukachenko, Kontury novoi modeli, 2010
4) 27.11.2019, https://www.bloomberg.com/news/articles/2019-11-27/belarus-s-soviet-economy-has-worked-better-than-you-think