Precariedade, concursos, COVID-19 e a urgência de um Serviço Público de Cultura

Miguel Soares

ANÁLISE Pas­sado um pouco mais de quatro meses desde o ínicio da epi­demia de COVID-19 no nosso país e con­se­quente can­ce­la­mento du­rante meses de todos os en­saios, gra­va­ções, aulas e es­pec­tá­culos pre­vistos, im­porta fazer uma ava­li­ação da si­tu­ação no sector cul­tural, bem como o que se passou de então para cá.

A luta pela cul­tura é uma luta do povo por­tu­guês, pela sua his­tória e iden­ti­dade

Abor­da­remos, so­bre­tudo, a si­tu­ação de ar­tistas e tra­ba­lha­dores das artes do es­pec­tá­culo – te­atro, mú­sica, dança, circo, per­for­mance –, do ci­nema e do au­di­o­vi­sual. Não é fácil re­ferir com rigor o nú­mero de tra­ba­lha­dores destas áreas ar­tís­ticas, de tal forma que uma das rei­vin­di­ca­ções das es­tru­turas re­pre­sen­ta­tivas do sector é a ne­ces­si­dade da sua ca­rac­te­ri­zação. Dados ofi­ciais apontam nú­meros ex­tre­ma­mente dís­pares para tra­ba­lha­dores da cul­tura, em sen­tido lato (por­tanto, não só nestas pro­fis­sões).

As Es­ta­tís­ticas da Cul­tura/​2018, da Conta Sa­té­lite da Cul­tura, re­ferem 131,4 mil; o INE, na po­pu­lação em­pre­gada por CAE, as­si­nala 68300; o Ga­bi­nete de Es­tra­tégia e Pla­ne­a­mento, do Mi­nis­tério do Tra­balho, So­li­da­ri­e­dade e Se­gu­rança So­cial, in­dica 28777, em­bora este se re­fira a qua­dros de pes­soal, fe­nó­meno es­casso neste sector. Sa­bemos também que, em 2017, 28% do total dos tra­ba­lha­dores tem­po­rá­rios eram in­te­lec­tuais (alar­gando aqui no­va­mente o uni­verso en­vol­vido, neste caso para lá de todo o sector da cul­tura).

A cul­tura foi um tubo de en­saio para a al­te­ração das re­la­ções la­bo­rais. A pro­li­fe­ração de re­cibos verdes, tra­balho dito in­formal, ao pro­jecto ou à peça ou, na me­lhor das hi­pó­teses, con­tratos a termo, a di­mi­nuição pro­gres­siva de sa­lá­rios e ca­chês e a des­re­gu­lação de ho­rá­rios de tra­balho foram-se ge­ne­ra­li­zando, acom­pa­nhados da de­vida in­ter­venção ide­o­ló­gica, através da ba­na­li­zação e na­tu­ra­li­zação de todos estes fac­tores, no­me­a­da­mente com con­ceitos como o tra­balho in­de­pen­dente ou a in­ter­mi­tência, que as­su­miam a pre­ca­ri­e­dade e pe­ríodos sem tra­balho como nor­mais e ine­rentes a estas pro­fis­sões.

Acres­centar crise à crise
É neste en­qua­dra­mento que surge a si­tu­ação a que as­sis­timos, no se­gui­mento da epi­demia. Com os can­ce­la­mentos, os ren­di­mentos do tra­balho bai­xaram dras­ti­ca­mente ou dei­xaram de existir de ime­diato, em muitos casos até hoje.

Mú­sicos com con­certos can­ce­lados fi­caram sem o res­pec­tivo pa­ga­mento, ou com o pa­ga­mento adiado para quando e se se re­a­lizar o con­certo, ou re­ce­beram uma parte do pa­ga­mento, se tiver sido esse o en­ten­di­mento da en­ti­dade con­tra­tante; mú­sicos que tocam em bares de ho­téis, e são muitos, não re­ce­beram e não têm pers­pec­tivas de o fazer; ac­tores e téc­nicos das pro­du­toras das te­le­no­velas (Plural, SP Te­le­visão e Coral) re­ce­beram 50% ou 25% do que re­ce­be­riam, sendo que os con­tra­tados à sessão, muitos também, não re­ce­beram nada; ac­tores, bai­la­rinos, mú­sicos, téc­nicos e ou­tros tra­ba­lha­dores de es­tru­turas de cri­ação ar­tís­tica, com todos os es­pec­tá­culos can­ce­lados, fi­caram também à mercê do que as en­ti­dades con­tra­tantes de­ci­diram, a somar ao per­ma­nente pro­blema das re­du­zidas verbas atri­buídas pelo Go­verno em apoios.

Note-se, aqui, que há poucos meses de­zenas de es­tru­turas fi­caram sem o apoio que lhes era de­vido nos con­cursos de apoio às artes 2020/​2021, pondo em sério risco a sua exis­tência e o tra­balho dos seus pro­fis­si­o­nais – é o caso de his­tó­ricas e im­por­tan­tís­simas com­pa­nhias, como o Cen­drev, em Évora, ou o Te­atro dos Aloés, na Ama­dora. Na grande mai­oria dos casos rei­ni­ci­avam-se em Março os pro­jectos e a re­a­li­zação dos es­pec­tá­culos, após meses de tra­balho de pre­pa­ração – regra geral pago apenas com o início das apre­sen­ta­ções –, es­go­tando-se o balão de oxi­génio in­su­flado em cada uma das vidas com o pa­ga­mento do úl­timo es­pec­tá­culo.

A re­a­ber­tura de al­guns te­a­tros, o rei­nício de gra­va­ções nas pro­du­toras de ci­nema e au­di­o­vi­sual, a re­a­li­zação de con­certos e mesmo de al­guns fes­ti­vais de te­atro (onde se des­taca o Fes­tival de Te­atro de Al­mada) e de mú­sica, sendo muito im­por­tante para o sector (e para cada um de nós, que pre­ci­samos de cul­tura, lazer e con­vívio), deixa ainda mi­lhares de tra­ba­lha­dores sem qual­quer ac­ti­vi­dade e, con­se­quen­te­mente, sem qual­quer ren­di­mento.

Epi­demia da pre­ca­ri­e­dade
A dra­má­tica si­tu­ação que vi­vemos deixa ainda mais a clara a ne­ces­si­dade de com­bater e er­ra­dicar o tra­balho pre­cário na cul­tura. Este fla­gelo, agora os­ten­si­va­mente vi­sível, é a raiz do pro­blema com que os tra­ba­lha­dores se con­frontam. A com­pre­ensão desta re­a­li­dade tem vindo, nos úl­timos anos, a ga­nhar ter­reno.

A ma­ni­fes­tação de 6 de Abril de 2018 foi um ponto de vi­ragem nesta ba­talha, pelo que po­pu­la­rizou, à es­cala de massas, três ideias fun­da­men­tais e ne­ces­sa­ri­a­mente in­ter­li­gadas, aliás de­fen­didas pelo Par­tido: a exi­gência do fim da pre­ca­ri­e­dade, da ins­ti­tuição de um Ser­viço Pú­blico de Cul­tura (SPC) e da atri­buição de 1% do Or­ça­mento do Es­tado. A 4 de Junho deste ano, dando voz à in­dig­nação e pro­testo dos tra­ba­lha­dores da cul­tura, o sin­di­cato Cena-STE con­vocou e pro­moveu, em Lisboa, Porto e Faro (aqui pela pri­meira vez), im­por­tantes ma­ni­fes­ta­ções, cujo mote cen­tral era, pre­ci­sa­mente, a ne­ces­si­dade de di­reitos la­bo­rais, bem como a exi­gência ao Go­verno de me­didas que fi­zessem face à dra­má­tica si­tu­ação vi­vida, no­me­a­da­mente a cri­ação de um fundo de apoio so­cial de emer­gência ao te­cido cul­tural e ar­tís­tico, pro­posta apre­sen­tada pelo Par­tido logo a 30 de Março.

A luta contra a pre­ca­ri­e­dade na cul­tura passa também pela rup­tura com a po­lí­tica pri­va­ti­za­dora, mer­can­ti­lista e des­res­pon­sa­bi­li­za­dora do papel do Es­tado, cons­ti­tu­ci­o­nal­mente atri­buído. Quando pro­pomos a ins­ti­tu­ci­o­na­li­zação de um Ser­viço Pú­blico de Cul­tura (SPC) o que de­fen­demos é uma po­lí­tica de Es­tado que pro­mova a de­mo­cra­ti­zação da cul­tura, o acesso à livre cri­ação e fruição cul­tural, a sua im­plan­tação em todo o ter­ri­tório, livre dos con­di­ci­o­na­lismos e da su­jeição ao «mer­cado» e ao «gosto» que pro­move, com todas as res­tri­ções que ele impõe à cri­ação – logo, ao tra­balho – de mi­lhares de ar­tistas.

De­fen­demos um au­mento sig­ni­fi­ca­tivo do fi­nan­ci­a­mento, a partir do Or­ça­mento do Es­tado (in­de­pen­den­te­mente do papel in­subs­ti­tuível das au­tar­quias na de­mo­cra­ti­zação da cul­tura, mas que é com­ple­mentar e não pode subs­ti­tuir o papel do Es­tado cen­tral), que se con­subs­tancia na con­sig­nação de 1% à cul­tura, ca­mi­nhando para 1% do PIB. Re­cor­demos que este OE do Go­verno do PS se fica pelos 0,28%! Não há Ser­viço Pú­blico de Cul­tura sem fi­nan­ci­a­mento, nem o fi­nan­ci­a­mento será su­fi­ci­ente sem uma de­fi­nição de po­lí­tica cul­tural do Es­tado, de de­mo­cra­ti­zação, como aquela que pro­pomos: só a con­ju­gação destes dois ele­mentos per­mi­tirá a exis­tência de tra­balho, e tra­balho com di­reitos.

Porque os tra­ba­lha­dores são parte in­te­grante e fun­da­mental deste SPC, da sua ela­bo­ração e cons­trução, e porque a es­ta­bi­li­dade e a se­gu­rança no tra­balho são fac­tores sem os quais a cri­ação não é livre nem se pode de­sen­volver. Não é pos­sível criar sem saber se se pagam as fac­turas; sem ter um mí­nimo de se­gu­rança sobre como vai ser o dia se­guinte. Em tensão per­ma­nente com o fu­turo.

Outro mo­delo de apoio às Artes
As mai­ores ac­ções de luta nos úl­timas anos têm sido em torno do mo­delo de apoio às artes vi­gente, ba­seado em con­cursos anuais, bi­e­nais ou qua­dri­e­nais. Estas mo­vi­men­ta­ções de­correm de dois pro­blemas cen­trais: a falta de di­nheiro para dar res­posta à ri­queza dos pro­jectos cul­tu­rais exis­tentes, e que assim se perdem, se des­mo­ronam e acabam, e a per­ma­nente in­cer­teza que daí de­corre sobre a vida das es­tru­turas de cri­ação ar­tís­tica e os seus tra­ba­lha­dores. Ou seja, anu­al­mente, mas par­ti­cu­lar­mente de dois em dois ou de quatro em quatro anos, qual­quer es­tru­tura corre o risco de de­sa­pa­recer, le­vando con­sigo, para o de­sem­prego, todos os seus tra­ba­lha­dores.

São pouquís­simos os tra­ba­lha­dores efec­tivos nas es­tru­turas de cri­ação ar­tís­tica, quer porque o di­nheiro não chega para ter mais, quer porque a pers­pec­tiva destas aca­barem abrup­ta­mente está sempre pre­sente. As pro­postas do Par­tido dão, também aqui, a res­posta a estas ques­tões: os apoios pú­blicos serem atri­buídos às es­tru­turas, e não aos pro­jectos, dando-lhes assim es­ta­bi­li­dade, e passar a pri­vi­le­giar uma ver­tente não con­cursal, não con­cor­ren­cial e ex­clui­dora, ava­li­ando o fazer ar­tís­tico, o per­curso e pro­jecto das es­tru­turas, eli­mi­nando a om­ni­pre­sente eli­mi­nação dos apoios por ra­zões bu­ro­crá­ticas e ad­mi­nis­tra­tivas, como hoje ocorre.

Acresce que um dos ele­mentos a ter em conta nos apoios pú­blicos seria pre­ci­sa­mente o da exis­tência de tra­ba­lha­dores, com vín­culo e es­ta­bi­li­dade. Uma es­tru­tura fixa, por­tanto.

Pro­gresso e so­be­rania
A acção do Go­verno neste pe­ríodo, una­ni­me­mente cri­ti­cada pela au­sência de me­didas e de res­postas, pelos va­lores ri­dí­culos e até ofen­sivos dis­po­ni­bi­li­zados, pela forma exi­gida para o acesso a esses apoios, que ex­cluía e ex­cluíu mi­lhares de tra­ba­lha­dores, foi de­mons­tra­tiva da visão do PS para a cul­tura. Uma visão que, ao mesmo tempo que a vê como se­cun­dária e des­car­tável, a vê também como sector eco­nó­mico, a ser me­dido e ava­liado pela ri­queza eco­nó­mica que cria e pelo po­ten­cial tu­rís­tico que possa ter.

Uma visão que pri­vi­legia e pro­move a sua pri­va­ti­zação e a en­trega a grupos eco­nó­micos. Já a co­nhe­cíamos com a pri­va­ti­zação e con­cessão a pri­vados de mo­nu­mentos, pa­lá­cios e cas­telos; com a en­trega do sector do livro e da dis­tri­buição aos seus mo­no­pó­lios; com os me­cenas para mu­seus e te­a­tros na­ci­o­nais; com a sub­missão às ope­ra­dores de te­le­visão por cabo no ci­nema e au­di­o­vi­sual.

Teve um novo passo com a grande me­dida anun­ciada pelo Go­verno, a par do fa­mi­ge­rado e der­ro­tado Tv­fest: a cri­ação de uma pla­ta­forma di­gital onde pri­vados e ar­tistas ne­go­ci­a­riam di­rec­ta­mente con­tratos e pro­jectos. Nela temos a NOS, a Vo­da­fone, a Meo e a Al­tice; a Sa­gres e a Super Bock; a EDP e a Galp; a Fi­de­li­dade e a Ageas; o Mon­tepio, a CGD, o Novo Banco, o BCP e o BPI.

Este «ver­da­deiro mo­vi­mento na­ci­onal pela nossa cul­tura», con­forme a apre­sen­tação no sítio da In­ternet, é mais um pe­ri­goso passo no ca­minho de mer­can­ti­li­zação da cul­tura, mas é também um grave avanço na su­jeição ao mer­cado – pelos grandes grupos eco­nó­micos e fi­nan­ceiros, na­ci­o­nais e es­tran­geiros – da­quilo que é criado e di­vul­gado no nosso país. Ou seja, a pro­moção, através da cul­tura e do en­tre­te­ni­mento, da sua ide­o­logia, va­lores, cos­tumes e prá­ticas.

A luta pela cul­tura é uma luta dos seus tra­ba­lha­dores. Mas é, so­bre­tudo, uma luta de todos os tra­ba­lha­dores e do povo por­tu­guês, pela sua his­tória, o seu pa­tri­mónio ma­te­rial e ima­te­rial, po­pular e eru­dito, pelo di­reito à cri­ação e fruição, pelo pro­gresso e pela so­be­rania na­ci­onal.