O 25 de Novembro e os media estatizados – Histórias de sofrimento e luta

Fernando Correia

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O lugar nos nossos media de uma investigação jornalística isenta de derivas sensacionalistas, destinadas a chocar, emocionar, a caçar audiências, tem vindo a diminuir cada vez mais devido aos condicionalismos económicos próprios da crise do sector e à primazia dada ao investimento no superficial e ligeiro, fácil de ler e de digerir. É em parte por isso que nos últimos tempos têm aparecido publicadas em livro excelentes obras de jornalismo de investigação, como foi o caso recente de O 25 de Novembro e os Media Estatizados – Uma História por Contar (Caminho), de Ribeiro Cardoso.

A sua leitura fez-nos lembrar Quando Portugal Ardeu (Oficina do Livro), de Miguel Carvalho, sobre a rede bombista no chamado «Verão quente» de 1975, livro já aqui devidamente referenciado em textos de Agostinho Lopes. E se juntamos estas duas obras é porque, para além do seu significado e qualidade, algo de muito importante as une: a necessidade de resgatar da memória colectiva momentos fundamentais da história pós-25 de Abril, marcada pela luta entre os que queriam manter os privilégios do passado ou disfarçar a luta de classes com vestes cor de rosa ou tons aproximados, e os que assumida e frontalmente estavam do lado de Abril e das suas conquistas.

Jornalista de profissão há mais de quatro décadas, Ribeiro Cardoso (RC) afastou-se deliberadamente, tal como o tinha feito Miguel Carvalho, das abordagens próprias de uma certa linha de investigação académica, pretensamente objectiva e neutra, mas que acaba por se revelar como uma mera réplica, cientificamente escassa mas abundantemente preconceituosa, dos cânones do jornalismo dominante, arquitectados ao gosto de quem pode e manda. E assim contaminando perigosamente a memória, que deverá ser colectiva, de um passado que hoje é relativamente recente mas amanhã deixará de o ser...

RC não foi por aí e fez o que devia ser feito: durante dois anos leu a imprensa da época e livros alusivos, consultou dezenas de acórdãos e de processos que correram em tribunal, recolheu depoimentos e conversou com largas dezenas de saneados (jornalistas e outros profissionais do sector) de quem obteve preciosa documentação, nomeadamente comunicados dos trabalhadores e das administrações.

O livro é dedicado a todos os mais de 150 trabalhadores saneados (RTP, Emissora Nacional, Diário de Notícias, Rádio Clube Português, O Século/SNT e ANOP), mas também, de forma muito especial, a «alguns dos meus amigos que, tendo passado por estas vicissitudes e vexames sem nunca baixar os braço, já partiram»: Urbano Tavares Rodrigues, Artur Ramos, Manuel Ferreira, Rui Pedro, Joaquim Benite, Ernesto Sampaio, Mário Ventura Henriques, Figueiredo Filipe, David Lopes Ramos, Daniel Ricardo e, «um caso especialíssimo», José Saramago.

Revolução e contra-revolução

A exaustiva e pormenorizada investigação jornalística de RC centra-se numa das fases mais decisivas da Revolução, que, no quadro de uma situação complexa e contraditória em que a tentativa golpista se inseriu, poderia ter comprometido os caminhos de Abril. Este facto suscita-nos a oportunidade e interesse em invocar aqui um brevíssimo mas preciso e autorizado enquadramento histórico dos acontecimentos desse período.

Deve sublinhar-se que o 25 de Novembro de 1975, «por um lado, constitui um elemento do processo geral da contra-revolução no caminho para o fim da dinâmica revolucionária, para a efectiva dissolução do MFA, para o restabelecimento da hierarquia militar controlada pelas forças de direita. Por outro lado, o seu resultado imediato não foi a repressão ao PCP e ao movimento operário e a instauração de uma nova ditadura, como queriam, e não estiveram longe de conseguir, os protagonistas fascistas e fascizantes, mas a continuação (com os comunistas e com o forte movimento sindical de classe) de um regime democrático».1

E a solução política encontrada para a saída do golpe «resultou da aliança não negociada, não debatida, não acordada, não explicitada, mas aliança com o PCP, conjuntural e objectivamente existente, de chefes das Forças Armadas, destacados participantes na preparação do golpe e na sua execução, mas defensores da continuação das liberdades e da democracia política.»2

Só perde quem desiste de vencer

Perguntado agora por RC sobre com que base legal na manhã do dia 26 foram suspensos e despedidos, sem sequer terem sido ouvidos, tantos trabalhadores da EN, um funcionário da empresa – que aliás já na altura não era visto com grande simpatia pelos seus colegas... – disse: «O que tenho a dizer é muito simples: o que se passou naquele dia não tem nada a ver com legalidade, mas com política. E aqui há dois lados: um ganha e o outro perde. Foi o que aconteceu.»

Certo é que dos trabalhadores saneados não houve um único que não tenha ganho em Tribunal, e mais tarde, graças à sua resistência e luta e apoios que tiveram, todos foram devidamente indemnizados (reposição de salários, senhas de refeição e promoções). Só que entretanto – no caso da RTP foram mais de dez anos de espera – houve os que andaram a vender livros de porta em porta, alienaram património familiar, pediram empréstimos para dar de comer aos filhos, viram a sua vida virada ao contrário...

Ao longo das mais de 400 páginas, pelos olhos do leitor perpassam, com maior ou menor demora, saneadores, cúmplices ou candidatos a saneadores, políticos que não sanearam mas mandaram ou permitiram sanear, outros que foram enganados ou ingénuos, e também aqueles para quem os saneamentos eram apenas o princípio de algo mais... Permite-nos recordar ou conhecer figuras cuja verticalidade nunca esteve em causa, mas também outras figurinhas e figurões caracterizados por uma horizontalidade descendente que então se viu e mais tarde se confirmou. RC recorda-nos histórias conhecidas mas com novos pormenores, revela-nos muitas outras que estavam por contar. E ainda há espaço para descrever, de forma documentada e impressiva, esses dois episódios lamentáveis que foram os «casos» República e Renascença. E muitos outros. Só lendo.

 

1 Álvaro Cunhal, A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (a contra-revolução confessa-se), 1999, edições Avante!, pp 229-230.

2 Ibidem, p 228.

 



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