Cameron e Sarkozy mentiram
Um relatório do parlamento da Grã-Bretanha sobre a intervenção da NATO na Líbia, em 2011, acusa o antigo primeiro-ministro David Cameron de ter cometido «erros». As conclusões dos parlamentares britânicos, embora tardias, comprovam, no essencial, que a agressão militar dos Estados Unidos e aliados podia ter sido evitada e não foi motivada por razões «humanitárias» mas por interesses políticos e económicos. No documento, o ex-presidente francês Nicolas Sarkozy é também, e uma vez mais, posto em causa.
A Líbia é hoje, após cinco anos de guerras, um país dividido, sem autoridade estatal central, com a economia destruída, alvo de ingerências e violações estrangeiras de toda a ordem
A Comissão dos Negócios Estrangeiros do parlamento britânico divulgou a 14 de Setembro um relatório sobre a intervenção da NATO na Líbia, em 2011, no qual o então primeiro-ministro David Cameron, conservador, é acusado de ter cometido graves erros políticos.
«Postulados erróneos» e «intervenção mal concebida», baseada em «discursos» e não em informações fiáveis, «uma intervenção destinada a proteger civis transformada numa política visando a mudança de regime na Líbia com meios militares», concluem os parlamentares de Westminster.
Foram necessários cinco anos para que a Grã-Bretanha admitisse publicamente o seu «erro», ou melhor, a mentira que serviu de pretexto e de cobertura à guerra de agressão contra a Líbia, com todos os crimes e as suas dramáticas consequências. O governo de Londres, lê-se no relatório, «não verificou a ameaça real que o regime de Khadafi representava para os civis, tomou à letra de forma selectiva alguns elementos da retórica» do líder líbio «e falhou a identificação de facções islamistas radicais no seio da rebelião».
Por outras palavras, os deputados ingleses avaliam agora que Londres não quis reconhecer o evidente exagero da «ameaça» que representava o governo líbio – uma «ameaça» inventada pela propaganda imperialista para justificar a agressão – e abriu a porta a bandos terroristas. E escrevem no relatório, em linguagem cínica e hipócrita, que «um compromisso político teria podido permitir proteger a população, mudar e reformar o regime a um custo menor».
Num artigo recente na edição on-line da revista Afrique Asie, Christine Abdelkrim-Delanne relembra como foi a agressão militar das potências ocidentais contra a Líbia, na altura um dos estados africanos mais desenvolvidos. Hoje, após cinco anos de guerras, é um país dividido, sem autoridade estatal central, com a economia destruída, alvo de ingerências e violações estrangeiras de toda a ordem.
A 19 de Março de 2011, a Nato e seus aliados, reagrupando à cabeça as forças navais norte-americana (operação Odyssey Dawn) e britânica (operação Ellamy) e as forças aéreas francesa (operação Harmattan), britânica e canadiana (operação Mobile), interveio militarmente na Líbia, violando abertamente as resoluções das Nações Unidas.
Participaram também nos ataques forças da Dinamarca, Bélgica, Itália, Noruega, Qatar, Emirados Árabes Unidos, Espanha e Turquia, entre outros países.
Os EUA de Barack Obama e de Hillary Clinton, a França de Sarkozy e a Grã-Bretanha de Cameron dirigiram as operações nos primeiros dias mas, logo a 23 de Março, a NATO passou a assegurar o comando (operação Unified Protector).
Após o derrube e assassinato de Khadafi, a guerra contra a Líbia «terminou» a 31 de Outubro, causando a morte de dezenas de milhares de civis e provocando uma situação de caos indescritível de que o país ainda não conseguiu libertar-se.
E, 14 meses mais tarde, a França de François Hollande enviava tropas para o Mali (onde permanecem), para combater os mesmos grupos jihadistas cuja intervenção do Ocidente na Líbia fez emergir…
A jornalista Christine Abdelkrim-Delanne faz bem em recordar que David Cameron – que, entretanto, após o referendo sobre o Brexit, abandonou o governo e a liderança do Partido Conservador – não foi o único responsável por este dito «erro» pesado de consequências. No início de 2016 Obama declarou numa entrevista que «este episódio líbio foi o pior erro do meu mandato». Não por arrependimento, esclareceu, mas por não ter acautelado o pós-guerra.
Sabemos bem que a agressão à Líbia não foi um «erro» mas antes uma agressão a um Estado soberano e laico que afirmava a sua soberania e independência nacional, uma política pan-africana e diversificadas relações externas face aos interesses do imperialismo. O objectivo da agressão foi a destruição do Estado líbio e o saque das imensas riquezas do seu povo, das dezenas de milhares de milhões de dólares do seu fundo soberano, do petróleo e do gás.
Interesses de Sarkozy
Além de Cameron e Obama, deste «erro» ou «episódio» da Líbia é também responsável Nicolas Sarkozy, o então presidente da República de França e agora uma vez mais empenhado na corrida ao Eliseu, com um discurso ainda mais à direita, nas eleições de 2017.
O papel e as responsabilidades de Sarkozy e mais alguns dirigentes franceses na agressão à Líbia são abordados num outro artigo, este da revista Jeune Afrique, da autoria de Laure Broulard.
Ela conta que o relatório parlamentar britânico publicado em meados deste mês relembra os argumentos de Alain Juppé, ministro francês dos Negócios Estrangeiros em 2011, quando apresentou o projecto de intervenção militar na Líbia perante o Conselho de Segurança da ONU. Insistia Juppé na urgência humanitária, garantindo que a situação no terreno era «alarmante» e que restava pouco tempo para intervir, «talvez uma questão de horas», urgência que os deputados britânicos consideraram ter sido «largamente exagerada».
A comissão parlamentar denunciou, sem rodeios, as razões que levaram Paris a apoiar com tanto vigor a intervenção contra Kadhafi como sendo sobretudo «de ordem do interesse nacional francês ou do interesse pessoal de Nicolas Sarkozy».
Citando conversas entre governantes (incluindo Hillary Clinton) e diplomatas norte-americanos e franceses, filtradas em 2015 (daí a sanha das autoridades de Washington e Londres contra sítios web como a WikiLeacks e contra jornalistas como Julian Assange…), o relatório enumera as verdadeiras razões do apoio da França à agressão militar: uma vontade de obter uma parte maior do petróleo produzido na Líbia; de aumentar a influência francesa na África do Norte; de melhorar a imagem de Nicolas Sarkozy em França; de responder aos projectos de Kadhafi de suplantar a França na África francófona; e de «dar às forças armadas francesas uma oportunidade de reafirmar a sua posição no cenário mundial».
Para a Afrique Asie, como para muitas outras publicações que escapam ao sistema mediático hegemónico, fica claro, como foi repetidamente denunciado ao longo destes anos, que, na Líbia, com a agressão militar, o objectivo das potências ocidentais foi sempre o de liquidar Kadhafi e o seu governo. Um crime passível de ser julgado por um tribunal internacional…
Esta tese, de julgar os responsáveis pela catástrofe líbia, é defendida também, na mesma revista, por um jurista francês, Gilles Devers. Escreve ele que «é justo desejar que as populações líbias se organizem» e apresentem queixa perante o Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia, contra Sarkozy, Cameron e outros envolvidos. E questiona: «A França e a Grã-Bretanha ratificaram o tratado [que criou o TPI], pelo que os seus agentes devem assumir as suas responsabilidades quando se envolvem num conflito armado internacional. A lei é igual para todos, não?».
Guerra e petróleo
A destruição da Líbia em 2011, pelos EUA, Grã-Bretanha, França e outros aliados, não foi apenas militar, ela atingiu fortemente a economia, a organização social e o próprio Estado. Estado construído por Khadafi, desde que chegou ao poder, em 1969, quando derrubou a reaccionária monarquia pró-ocidental do rei Idris e fundou a República.
O jornalista Achille Lollo, colaborador de jornais e televisões italianas e correspondente do Correio da Cidadania, no Brasil, defende nessa publicação que «a destruição da Jamahiriya (palavra que pode ser traduzida como Estado Popular) líbia provocou o fim dos entendimentos e das relações que durante anos haviam permitido o funcionamento centralizado de um Estado, com quase 35 tribos, étnica e culturalmente diferentes, e quase um milhar de clãs familiares».
Com a queda do governo de Kadhafi, quebrou-se a unidade nacional e agravaram-se divisões étnicas, muitas vezes fomentadas e instigadas, surgindo centenas de milícias armadas com base em tribos ou alianças tribais.
Para Lollo, com a agressão e as ingerências estrangeiras que se seguiram, «estas divisões transformaram-se, rapidamente, numa guerra civil em função da necessidade de controlar as refinarias de petróleo, os terminais marítimos de carga, os oleodutos, os gasodutos ou os campos de extracção e depois negociar com as multinacionais». De facto, após a purga de toda a estrutura dirigente da Jamahiriya derrubada, «as multinacionais europeias e estado-unidenses começaram a prometer a compra de hidrocarbonetos somente a quem conseguia garantir o recomeço da produção e, portanto, das exportações».
Desta forma, as milícias multiplicaram-se, «alimentando cada vez mais uma guerra civil que transformou a Líbia em um não-Estado», uma situação que destruiu a economia e as infra-estruturas existentes. Por isso, testemunha o jornalista italiano, «hoje na Líbia há muitas cidades sem energia eléctrica; a distribuição da água potável é precária e na maioria dos casos é garantida por carros-tanques que os próprios moradores pagam para garantir o seu abastecimento; os hospitais e o sistema de correio quase não existem mais; as redes comerciais que vendiam os produtos alimentares ficaram reduzidas a 10 por cento; e as fábricas foram todas destruídas».
Foi nesse contexto que os fundamentalistas do «Estado Islâmico» (EI) inventaram a criação do Emirado Islâmico de Sirte; que em Benghazi se consolidou o poder do general Khalifa Haftar, apoiado pelo Egipto e Arábia Saudita e defensor do governo/parlamento de Tobruk; e que em Março passado o chefe do chamado Governo de Unidade Nacional (GUN), Fayez al-Serraj, chegou à capital, Trípoli, procedente da Tunísia, num navio de guerra, ficando enclausurado com o seu governo numa base naval.
Em Junho, al-Sarraj teceu uma aliança com as milícias islâmicas de Misrata, ligadas à Irmandade Muçulmana, que controlam o porto daquela cidade. Conta Achille Lollo: «Apresentando uma aparente estabilidade na capital, Trípoli, al-Serraj pediu às Nações Unidas que autorizassem os Estados Unidos a atacar as posições do EI na região do Sirte. Na realidade, a guerra contra o EI é outra tentativa para recolocar os Estados Unidos, a França e a Inglaterra na Líbia, com a medalha de libertadores». Uma operação que visa permitir viabilizar os acordos que as multinacionais estão a negociar com as várias facções para normalizar a produção e exportação do petróleo líbio – que é, verdadeiramente, o que lhes interessa.
As mais recentes notícias da Líbia, já desta semana, provenientes de Nova Iorque, onde Fayez al-Serraj foi entrevistado pela Reuters, dão conta de que a batalha por Sirte prossegue, apesar do apoio que as forças do GUN têm da aviação norte-americana, que bombardeia diariamente o EI.
Nessa entrevista, o chefe do governo de Trípoli faz um apelo à reconciliação nacional e afirma que é necessário unir a Líbia e impedir a sua divisão e fragmentação. Dirige-se em especial ao general Khalifa Haftar, que, com o seu Exército Nacional Líbio, conquistou e ocupou nas últimas semanas os principais portos e terminais exportadores do «crescente petrolífero» líbio. Al-Serraj promete, nas próximas semanas, um novo governo, resultante das negociações em curso, sob a égide da ONU e dos EUA, entre as «autoridades» do Oeste, em Trípoli, e do Leste, em Tobruk.
Em suma: as mesmas forças imperialistas que promoveram a guerra e destruíram em 2011 o Estado da Líbia e arruinaram a sua economia, mostram-se agora «preocupados» e dispostos a «trabalhar», com os bandos e as marionetas que criaram e suportam, pela paz e unidade nacional!
Mais tarde ou mais cedo, apesar da tragédia que vive, o povo líbio saberá organizar-se para lutar contra a dominação estrangeira e a pilhagem das suas riquezas. E trilhará os verdadeiros caminhos da paz, do reforço da unidade da nação, da reconstrução do seu Estado soberano, da independência nacional, do desenvolvimento do país com base no aproveitamento dos seus recursos naturais.