Os pobres que paguem a crise

Correia da Fonseca

Evitemos ser excessivamente suspeitosos: tomemos como certo que a escolha do anunciado novo imposto sobre o património imobiliário como tema dos «Prós e Contras» da passada segunda-feira não teve em vista lançar por via mediática uma espécie de mobilização contra essa medida fiscal mas sim, mais simplesmente, cavalgar (como agora é tão cavalarmente moda dizer) essa novidade e a emoção que ela possa ter suscitado em certas camadas, assim seguindo o que pode ser entendido como uma regra jornalística. De qualquer modo, porém, é quase certo que o debate era prematuro: não são conhecidos traços fundamentais do tal imposto, nem sequer se sabe se incidirá sobre patrimónios avaliados num certo montante ou sobre metade desse valor, o que não é pequena diferença. Talvez por isso os participantes no programa pareceram ser «de segunda linha», isto sem a mínima falta de consideração por qualquer deles: não estava ali ninguém que pudesse falar em nome do Governo, ninguém do sector político de onde partiu a proposta do imposto em questão, da plateia só se ouviu a voz do presidente da Associação dos Proprietários Lisbonenses a ameaçar com aumentos de rendas, que é o que melhor ele sabe fazer. Por tudo isto e talvez por alguma coisa mais, o insuficiente brilho discursivo dos intervenientes, aquela hora e picos foi insonsa e fatigante. Não obstante, emergiu dos argumentos trocados, se é que de argumentos chegou a tratar-se, uma espécie de conclusão subjacente: aquele imposto sobre o património, como aliás todos os impostos que incidam preferencialmente sobre as classes possidentes, são desaconselháveis, detestáveis, nocivos e, se o Estado precisa de recursos e enfrenta ainda um ambiente de crise, os pobres que a paguem. Como aliás aconteceu nos últimos anos e foi recentemente confirmado por um estudo da insuspeita Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Uma questão ideológica…

Como qualquer coisa que excede a mera curiosidade, registe-se que ao longo do programa muitas vezes foi referida, em adequado contexto ou não, «a ideologia» e o carácter «ideológico» disto ou aquilo como qualquer coisa de estranho, de condenável, porventura de natureza infecciosa como uma espécie de doença. A invocação surgiu sempre, como aliás é de regra nestes casos, na boca de quem está manifestamente dominado por uma ideologia conservadora, de direita, talvez até sem ter consciência disso, tão condicionada que está a respectiva cabecinha por preconceitos ideológicos e pela generalizada distorção a que a palavra é sujeita. É que «ideologia» não é nada que caracterize um sector de opinião política, é apenas (e não pouco) o conjunto de entendimentos que qualquer sujeito tem do mundo e da vida, o quadro geral que dele resulta e que condiciona decisões e acções, pelo que a palavra só por ignorância ou por má-fé pode ser usada como arma de arremesso político. É claro que um cidadão de esquerda tem uma ideologia, mas o de direita também e o mesmo acontece até ao sujeito que «não quer saber da política». O sempre saudoso doutor Salazar tinha uma ideologia, tal como Delgado teria outra e por isso queria «obviamente» demiti-lo. Mas o uso da palavra ou dos seus derivados no quadro de uma discussão directa ou indirectamente política não é inocente mesmo que radicado em ignorância, e essa utilização no «Prós e Contras» de segunda-feira foi talvez a nota mais feia que o programa nos deixou. Quanto ao resto, quase tudo afinal se ficou por vestígios de indignação perante a possibilidade de vir a ser cobrado a quem mais tem, ou no mínimo a quem alguma coisa tem (aceitando-se que um património imobiliário de um milhão de euros pode ser designado por «alguma coisa») uma contribuição que há-de servir para a tarefa de redistribuição que compete a qualquer governo que gere um país com milhões de pobres. Isto é, de cidadãos que, mergulhados na penúria, não têm nada que não seja tocado pela angústia.




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