Na terra de Oz

Sérgio Dias Branco

Michael Moore é um dos cineastas da esquerda estado-unidense mais reconhecidos na Europa. Associado ao Partido Democrata, desiludido com Barack Obama, crítico de Hillary Clinton, apoiante activo do movimento Occupy e de Bernie Sanders, Moore construiu uma obra cinematográfica e televisiva mordaz sobre a realidade económica, social, e política dos EUA de hoje. Nas suas obras, o realizador é também um performer, falando como um investigador que revela informações desconhecidas e mostrando-se como um repórter destemido que faz perguntas incómodas.

Roger e Eu (Roger & Me, 1989) retrata o declínio de Flint, no Michigan, depois da General Motors ter fechado unidades fabris e despedido 30 mil trabalhadores, ao mesmo tempo que o cineasta tenta falar, sem sucesso, com o CEO da empresa, Roger Smith. De lá para cá, o documentarista escolheu diversos alvos. Bowling for Columbine (2002), Prémio Especial do Festival de Cannes, surge ainda no rescaldo do massacre num liceu de Columbine em 1999, reflectindo sobre o acesso e a proliferação de armas de fogo nos EUA e a violenta cultura de medo propagada no país. Fahrenheit 9/11 (2004), Palma de Ouro no mesmo festival de cinema, disseca a presidência de George W. Bush e a sua «Guerra ao Terror» como resposta aos terríveis ataques de 11 de Setembro de 2001, das invasões do Afeganistão e do Iraque à aprovação de legislação repressiva dos direitos civis (USA PATRIOT Act), sem esquecer o papel dos meios de comunicação social dominantes. Sicko (2007) inquire o negócio lucrativo das grande seguradoras e da indústria farmacêutica em torno dos cuidados de saúde nos EUA, fazendo comparações com os serviços nacionais de saúde como o do Canadá e de Cuba. Capitalismo – Uma História de Amor (Capitalism: A Love Story, 2009) examina os custos sociais da crise financeira que eclodiu em 2007, expondo a ligação entre o poder económico de gigantes da banca como o Goldman Sachs e o poder político assim como a relação entre a financeirização da economia e a ganância do lucro imediato.

Tal como os filmes anteriores, E Agora Invadimos o Quê? (Where to Invade Next, 2015) tem um ponto de partida provocatório: Moore resolve participar na «guerra infinita» dos EUA contra outros povos e países, mas em vez de os agredir pretende aprender com eles e aplicar esse conhecimento na resolução de problemas do seu país. Por outras palavras, ele viaja pelo mundo com um olhar que não se desprende dos EUA, como é figurado numa das imagens do filme. Visita a Itália, França, Finlândia, Eslovénia, Alemanha, Portugal, Noruega, Tunísia, e a Islândia. Encontra trabalhadores com férias pagas e licenças de parentalidade, alimentação equilibrada e educação sexual nos liceus, escolas sem trabalhos de casa ou testes padronizados, universidades públicas sem propinas, consumo de drogas descriminalizado, prisões humanizadas e dignas, mulheres activas nos movimentos populares e democráticos, e grandes banqueiros responsabilizados e condenados em tribunal.

Na conclusão, Moore reencontra um velho amigo americano em Berlim, onde tinham estado em 1989 a bater com martelos e escopros contra o muro. Ele, que cresceu durante a Guerra Fria, diz que percebeu nesse momento que «qualquer coisa pode acontecer». Cinco anos depois, a eleição de Nelson Mandela como primeiro presidente da África do Sul reforçou essa ideia. Nesta confusão política sem discernimento histórico, o cineasta revê o que recolheu nas «invasões» e descobre que as boas ideias têm origem nos EUA, o que faz com que E Agora Invadimos o Quê? seja, no fundo, menos uma desmontagem do «excepcionalismo americano» e mais a sua confirmação. O Dia Internacional do Trabalhador, lembra-nos ele, tem raiz na luta dos trabalhadores organizados em Chicago no ano de 1886. Verdade. E, no entanto, esta lembrança torna mais evidente o desinteresse pela real situação de exploração laboral dos trabalhadores no idílico segmento sobre a Alemanha: 25 por cento dos trabalhadores ganham em média 230 euros por mês e as leis cerceiam a liberdade sindical e obrigam à convivência de classes no país com a maior desigualdade na distribuição de riqueza da União Europeia. O optimismo que polvilha o filme, ora é ingénuo, ora é incisivo (como na sequência, incluída no segmento sobre Portugal, acerca do encarceramento de toxicodependentes negros usados como mão-de-obra de multinacionais nas prisões). O optimismo ingénuo é assumido nos minutos finais. A ideia de que o que se perdeu pode ser simplesmente recuperado é veiculada sobre as imagens da Fada Boa do Sul que explica a Dorothy que o poder de regressar ao Kansas, isto é, à realidade económica e social da Grande Depressão, e abandonar o mundo de fantasia de O Feiticeiro de Oz (The Wizard of Oz, 1939) foi sempre dela. Estará Moore disposto a regressar ao Kansas?




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