O menino Carlos Pinhão
Conheci o Carlos Pinhão há anos largos, era eu debutante nas lides jornalísticas, puto a aprender essa coisa de informar em tempos em que a informação, até por ser um perigoso exercício de voltear chicuelinas evitando os cornos da censura, também formava, podem crer. E deformava. Nessa altura, entre o Diário de Lisboa e o Diário da Manhã havia um abismo tal que podíamos falar de antípodas para dizer da lonjura das suas diferenças. O DL andava às escondidas com o lápis azul, tentando fintar os censores. Aprendi a ser perito nesse jogo e tive bons mestres: o Fernando Assis Pacheco, o Mário Zambujal, o Urbano Tavares Rodrigues, por exemplo. O Diário da Manhã era a voz do dono, transformava centenas em muitos milhares quando abordava um apoio a Salazar e seus capangas, ignorava tudo o que acontecesse contra o regime, de forma que, ao lê-lo, os incautos ficassem convencidos de que nós por cá todos bem.
Eu a dar os primeiros passos no DL, o Carlos Pinhão já de nome feito n'A Bola, então apelidada, por gente do meio e fora dele, como a bíblia. A nossa amizade consolidou-se pelo tempo afora e tive nesse grande homem de sorriso menino um amigo daqueles.
Unia-nos a mesmo pendor para estar do lado dos que mais sofriam, éramos contra a guerra colonial, fugíamos à PIDE, atiçávamos as palavras possíveis contra a ditadura no papel onde voavam as nossas ideias e as impossíveis em encontros furtivos nas colectividades e noutros lugares onde acontecia o milagre de torná-las, afinal, possíveis. Tínhamos, além de tudo, opinião (diz o Baptista Bastos que um jornalista, para o ser, tem de ter opinião, assim se expressando contra o amorfismo que, dizem os teóricos da irrealidade, será garante de uma maior aproximação da objectividade. Duvido que não haja, por detrás desta asserção, um vestigiozinho de censura encapotada...).
Fizemos, apesar da diferença de idades que, nas ideias, não conta, percursos paralelos, nos jornais, nos livros, na dedicação de algum trabalho à escrita para os mais novos, não querendo eu dizer com isto que nos alcandorámos ambos ao mesmo patamar de qualidade, o Carlos era já um mestre e eu sou, ainda, um aprendiz. Mas esses percursos, esse percurso que ele e eu percorremos, sendo paralelos, eram próximos, de tal modo que as linhas do caminho de cada foram, muitas vezes, uma só. Foi por isso que a cumplicidade emergiu, primeiro num piscar de olho, depois com os dois olhos bem abertos, se nos ativermos ao comportamento possível antes e depois do Abril do nosso sorriso mais aberto.
Uma vez fomos ambos à mesma escola levando poemas e canções e estórias e sonhos aos meninos e meninas que nos ouviam contentes e connosco cantavam músicas e aprendiam letras com amanhãs por dentro. Entre outras coisas, cantei, para assegurar a comunhão entre o «artista» e a «plateia», o «Atirei o Pau ao Gato». Nada mais foi preciso para nos sentirmos todos juntos. A partir daí estava quebrada a barreira entre a novíssima assistência e os «grandes» que ali estavam para lhes ensinar umas coisas (e, diga-se, aprender outras tantas, mas isso não constava do programa oficial...).
No final, o Carlos Pinhão deu-me um papel que arrancara da cobertura da mesa onde estava. Nele escrevera uma rábula rimada com o «Atirei o Pau ao Gato» desconstruído e em nova edição (diria um meu professor de filosofia autor do livro que éramos obrigados a comprar, «refundida e melhorada»). Terminava assim:
«Pró menino Nuno, com um xi-coração do menino Carlos Pinhão».