Começar mal

Correia da Fonseca

O primeiro canal da RTP tem nova série, e não uma série qualquer: terá vinte e seis episódios semanais, o que garante presença até ao Verão, intitula-se «Depois do Adeus», título obviamente pilhado à canção que foi introdutória da madrugada de Abril, e propõe-se narrar as agruras dos que abandonaram Angola à pressa e em pânico após o derrube da ditadura colonial-fascista. É, pois, manifestamente, uma série com ambições, e dir-se-ia até que entre elas se poderá contar a intenção de amortizar um pouco a suposta dívida do País para com os que com escasso rigor foram designados por «retornados», pois não são poucos os que ainda sustentam que Portugal libertado deveria prosseguir a guerra colonial com vista a manter o que de facto era ocupação de pátria alheia e a assegurar a exploração mais ou menos intensa, mais ou menos brutal, das populações nativas. Ainda não há muitos dias, surgiu na imprensa diária o artigo de um sujeito que à assinatura do texto acrescentava a informação da sua patente militar e a afirmação de ter «vergonha na cara». O artigo pretendia justificar a mutilação de cadáveres por militares portugueses e a utilização de cabeças degoladas como armas de guerra psicológica. Em defesa do autor do texto pode-se alegar que provavelmente estará meio-louco, se não parvo de todo, mas o facto é que a minha própria cara se encheu de vergonha pela ainda subsistência de criaturas daquelas. É natural e legítimo, é claro, ter saudades do chamado Império Português e, num outro plano, do agradável sabor do quotidiano vivido em Angola pelos colonos portugueses com êxito na vida, convindo neste passo esclarecer que filho ou neto de colono continua a ser elemento do processo de colonização. Mas essa legitimidade não legitima, como não legitimaria em nenhum outro lugar, a opressão de um povo por outro povo. Entende-se que os que foram actores desse processo, e actores de boa consciência, não possam ter uma visão clara e incontaminada do drama que sobre eles desabou transformando-os em pagadores de uma dívida antiga. Mas ter razão de queixa, como se diz numa fórmula popularizada, é uma outra e diferente coisa.

Os outros custos

Acontece que, infelizmente, «Depois do Adeus» começa mal. Talvez até, antes do mais, pelo título surripiado a uma canção que ficou estreitamente ligada à libertação do povo português em primeiro lugar, mas também, num segundo tempo, à dos povos africanos em luta pela sua própria liberdade. Desta luta e da sua justeza nada nos disse este primeiro episódio da série: iniciado com a audição da notícia do derrube do fascismo, logo transita para imagens do êxodo em direcção a Lisboa. Num certo momento, pelo diálogo perpassa mesmo o projecto de uma independência branca e inevitavelmente racista num modelo rodesiano, sonho celerado que talvez ainda hoje permaneça, frustrado, em algumas cabecinhas. Depois, já em Lisboa, são supostas imagens da revolução e do apelidado PREC: as acções populares reduzidas a confrontos físicos entre jovens comunistas e do MRPP, uma caricatural referência a um 28 de Setembro apenas sugerido e nada explicado, um salto narrativo de mais de um ano para colar a manifestação da Fonte Luminosa ao que vinha sendo toscamente contado, tudo entremeado com os dissabores acontecidos à família que protagoniza a série. Tudo ali se canaliza para a infelicidade que colheu os regressados, não apenas em supressão do quadro histórico que a explica, o que seria discutível mas ainda aceitável, mas em distorção e supressão. Pode talvez alegar-se que se trata apenas de um primeiro episódio, que o que falta ainda poderá chegar e o que está falsificado ainda poderá ter correcção. Poderá, decerto, mas é improvável. Porque tudo neste episódio inicial de «Depois do Adeus» surge directa ou indirectamente orientado para a saudade da finda felicidade colonialista e para a tácita condenação do que talvez tenha sido a mais imperiosa consequência de Abril: o fim das guerras de África e do crime histórico que é o colonialismo. É certo que a súbita mudança incomodou, que percursos de vidas se viram truncados. Mas perante esse custo, talvez seja saudável pensar nos custos pagos pelas populações africanas, antes e depois da sua rebelião, ao longo de muitas décadas.



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