Maio, poesia e luta

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André Lemos

«Oito horas para o tra­balho, oito horas para o sono e oito horas para a casa» foi a con­signa que a 1 de Maio de 1886 levou 200 000 ope­rá­rios norte-ame­ri­canos a en­trar em luta. Pas­sados 125 anos, quando a jor­nada de tra­balho de oito horas en­tre­tanto con­quis­tada volta a ser posta em causa pelo ca­pital, um grupo de jo­vens ar­tistas ofe­receu ao Avante! o con­junto de ilus­tra­ções deste su­ple­mento que cons­titui um tri­buto ao 1.º de Maio. Através do seu tra­balho, que acom­pa­nhamos com po­emas do livro Maio, tra­balho, luta (Edi­to­rial Avante!), voltam com mais força as pa­la­vras Al­bert Spies, um dos már­tires de Chi­cago:

«se acre­di­tais que en­for­cando-nos po­de­reis acabar com o mo­vi­mento ope­rário – o mo­vi­mento do qual os mi­lhões de opri­midos, os mi­lhões que tra­ba­lham na mi­séria e na ne­ces­si­dade es­peram a sua sal­vação – se essa é a vossa opi­nião, então en­for­quem-nos! Aqui pisam uma chispa, mas ali e além, atrás de vocês, à vossa frente, por todo o lado, as chamas sur­girão. É um fogo sub­ter­râneo. Não o con­se­gui­reis apagar»

Marco Mendes

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Ofício de trevas
Poema XXIV

É pre­ciso que tragam a ban­deira
É pre­ciso que al­guém vá até ao fim da noite
e de­sen­terre a ban­deira
Se já não tiver mãos
que rasgue a terra com os dentes
mas que traga a ban­deira
Se já não tiver dentes
que afunde os olhos nessa terra
e lhe ar­ranque a ban­deira
que nela está se­pulta
É pre­ciso que os tam­bores anun­ciem a che­gada da ban­deira
Se não houver tam­bores
que os mortos se ale­vantem
e façam rufar seus ossos
em sol al­tís­simo à che­gada da ban­deira
Ilu­minem Ilu­minem Ilu­minem o ca­minho da ban­deira
Se as nu­vens de bai­o­netas forem trevas no ca­minho da ban­deira
que in­cen­deiem a noite com as pe­dras da rua
mas que haja luz à pas­sagem da ban­deira
para que os olhos va­zados vejam a ban­deira
para que as bocas ras­gadas cantem a ban­deira
para que os ferros caiam à pas­sagem da ban­deira

Carlos Maria de Araújo
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Pedro Nora
 

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Ana e An­tónio
 
A Ana e o An­tónio tra­ba­lhavam 
na mesma em­presa.
Agora foram ambos des­pe­didos.
Lá em casa, o si­lêncio sentou-se
em todas as ca­deiras
em volta da mesa vazia.
«Neo-Re­a­lismo!» dirão os es­tetas
para quem ser des­pe­dido
é o preço do pro­gresso.
Os es­tetas, esses, nunca
serão des­pe­didos.
Ou julgam isso, ou julgam isso.
 
Mário Cas­trim
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Pedro Nora

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A ca­mi­sola
[Tra­dução de Ma­nuel de Se­abra]
 
Sou filho de fa­mília muito hu­milde,
tão hu­milde que duma cor­tina velha
me fi­zeram uma ca­mi­sola. Ver­melha.
E por causa dessa ca­mi­sola
nunca mais pude andar pela di­reita.
Tive de ir sempre contra a cor­rente,
porque não sei o que se passa,
que todos os que a en­frentam
vão sempre de ca­beça ao chão.
E por causa dessa ca­mi­sola
não mais pude sair à rua
nem tra­ba­lhar no meu ofício
de fer­reiro.
Tive de ir para o campo de jornal,
pois assim nin­guém me via.
Tra­ba­lhava com a foice.
E apesar de todos os males,
sei tra­ba­lhar com duas coisas:
com o mar­telo e a foice.
Quase não com­pre­endo como a gente
quando me via pela rua
me gri­tava: Pro­gres­sista!
Eu julgo que tudo era
cau­sado pela ig­no­rância.
Talvez noutra cir­cuns­tância
já ti­vesse mu­dado de ca­mi­sola.
Mas como gosto muito dela
porque é quente e me con­sola,
peço-lhe que não se faça velha.

Ovidi Mon­tllor
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Ch­ris­tina Cas­nelli

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Le­genda: Frase ins­crita no me­mo­rial aos Már­tires de Chi­cago na re­volta de Hay­market de 4 de Maio de 1886


Para vós o meu canto...
Para vós o meu canto, com­pa­nheiros da vida!
Vós, que tendes os olhos pro­fundos e abertos,
vós, para quem não existe ba­talha per­dida,
nem des­me­dida mar­gura,
nem aridez nos de­sertos;
vós, que mo­di­fi­cais um leito dum rio;
- nos dias di­fí­ceis sem li­te­ra­tura,
penso em vós: e confio;
penso em mim e confio;
- para vós os meus versos, com­pa­nheiros da vida!
Se canto os bú­zios, que falam dos cla­mores,
das pragas imensas lan­çadas ao mar
e da fome dos pes­ca­dores, 
- penso em vós, com­pa­nheiros,
que tra­zeis ou­tros bú­zios para cantar...
Acuso as falas e os gestos inú­teis;
aponto as ruas tristes da ci­dade
a crivo de bo­cejos as me­ninas fú­teis...
Mas penso em vós e creio em vós, ir­mãos,
que tra­zeis ruas com outra cla­ri­dade
e outro calor no apertar das mãos.
E vou con­vosco. - De­fi­nido e pre­ciso,
er­guido ao alto como um grito de guerra,
à es­pera do Dia de Juízo...
Que o Dia do Juízo
não é no céu... é na Terra!

 Si­dónio Mu­ralha
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Ana Bis­caia

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João Cham­bell
 

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De se­mân­tica
[Tra­dução de Ma­nuel de Se­abra]
 
Re­cen­te­mente
na fá­brica
me­lho­raram muito
as re­la­ções hu­manas.
Agora, por exemplo,
ao tirar-se o prémio se­manal
a uma ope­rária
por uma mis­tura de fios,
por exemplo,
ou por qual­quer acto menor de in­dis­ci­plina,
já não se diz impor um cas­tigo;
diz-se:
es­ti­mular o sen­tido
da res­pon­sa­bi­li­dade.

Mi­guel Martí i Pol
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Ana Bis­caia

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Entre pa­trão e ope­rário
Entre pa­trão e ope­rário,
entre ope­rário e pa­trão,
o que é ex­tra­or­di­nário
é pre­tender-se união.
Não vista a pele do lobo
quem do lobo a lei en­jeita.
A pro­pri­e­dade é um roubo.
La­drão é quem a apro­veita.
Negar a luta de classes
é negar a evi­dência
de um mundo de duas faces,
de mi­séria e de opu­lência.

Ar­mindo Ro­dri­gues
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Mi­guel Car­neiro

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 Ana Bis­caia

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Canção da es­pe­rança
 
Co­ra­ções nossos fa­róis
Na noite desta ba­talha
Num re­fulgir de na­valha
 Rasgai o véu aos he­róis.   

As nu­vens hão-de passar!
Pe­netra-as o sol da alma
Para além do pró­prio olhar.
E os medos de ar­re­fecer
Es­panta-os um peito calmo
À fir­meza de vencer.

Os golpes de viva dor
Tem­peram a fé fu­tura
Cons­tante forjam o amor.
E as quedas não são fa­tais
Se a chama desta aven­tura
Em nós cresce ainda mais.

A luta nunca foi vã!
Os braços em li­ber­dade
Le­vantam outro amanhã.
E os lá­bios dão a florir
Os hinos desta ver­dade:
É de acção nosso porvir.

 Ar­qui­medes da Silva Santos
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Bruno Borges

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Canção dos que vivem das suas mãos
 
Não peço o de nin­guém.
Apenas o meu pão,
meu ar.

Apenas a flor,
o fruto do que fazem mi­nhas mãos.

Jesús López Pa­checo
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Ana Me­nezes

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Aviso
[Tra­dução de An­tónio Ramos Rosa]
 

A noite que pre­cedeu a sua morte
foi a mais breve de toda a sua vida
Pensar que es­tava vivo ainda
era um fogo no sangue até aos pu­nhos
A sua força era tal que ele gemia
Foi quando atingia o fundo deste horror
Que o seu rosto num sor­riso se lhe abriu
Não tinha apenas um único ca­ma­rada
Mas sim mi­lhões e mi­lhões de ca­ma­radas
Para o vin­garem sim bem o sabia
E então para ele ergue-se a al­vo­rada

Paul Éluard
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