Trabalho precário no complexo de Sines

Instabilidade alimenta o lucro

Domingos Mealha (texto)
Inês Seixas (foto)

Com grandes empresas da energia e do sector químico e com um importante porto de mar, o complexo industrial de Sines ocupa um lugar estratégico na economia nacional e gera, há décadas, lucros milionários para grupos nacionais e multinacionais. Em plena campanha das eleições presidenciais, o abuso do trabalho precário ganhou maior visibilidade, numa iniciativa com Francisco Lopes em Santiago do Cacém, a propósito das obras de reconversão da refinaria da Petrogal. Para melhor compreender como alastra e como se combate a precariedade de emprego na região, fomos ouvir alguns dos comunistas que ali trabalham, com responsabilidades na organização e luta dos trabalhadores.

O crescimento da precariedade tem motivos e responsáveis

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A primeira ressalva que é necessário fazer é que esta não é uma frente nova na actividade do PCP, do movimento sindical unitário e das comissões de trabalhadores. Depois, faz-se a distinção entre a precariedade de emprego que tem a ver com obras de grande envergadura, as quais exigem durante determinado período um acréscimo de mão-de-obra, e o emprego precário introduzido na laboração normal, para reduzir mais e mais a parte dos trabalhadores na repartição da riqueza criada.

Com estas premissas, partimos para a conversa com os nossos cinco entrevistados.

Telma Capucho, de 34 anos, é do Comité Central do PCP e da Direcção da Organização Regional do Litoral Alentejano (DORLA), e acompanha o trabalho do Partido nas empresas da região.

Martinho Pinho, de 47 anos, é há 23 trabalhador portuário no «terminal do carvão», operado pela Portsines, para quem trabalha através da Eporsines. É dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Portuários de Mar e Terra de Sines (Sinporsines) e integra a Comissão Concelhia de Sines e a DORLA do PCP.

João Damas, de 47 anos, é técnico de planeamento e preparação na Central Termoeléctrica de Sines, onde trabalha há 25 anos. Dirigente do Sindicato das Indústrias Eléctricas do Sul e Ilhas (SIESI/CGTP-IN), é também coordenador da Comissão de Trabalhadores da EDP Produção e da coordenadora das CT do Grupo EDP. Faz parte da Comissão Concelhia de Sines do PCP e é eleito na Assembleia Municipal.

Daniel Silvério tem 35 anos, trabalha desde 1998 na Repsol (então Borealis), onde é operador de exterior. É representante dos trabalhadores para a Segurança e Saúde no Trabalho e é dirigente do SITE Sul, da Fiequimetal, da CGTP-IN e das uniões de sindicatos de Sines (que também abrange os concelhos de Santiago do Cacém, Grândola e Alcácer do Sal) e do distrito de Setúbal. Integra a DORLA do PCP e é eleito na Assembleia Municipal de Santiago do Cacém.

Helder Guerreiro, de 35 anos, licenciado em engenharia, é coordenador técnico na Refinaria de Sines da Petrogal, onde trabalha há nove anos. Delegado sindical, é dirigente do SITE Sul e da União de Sindicatos de Sines, bem como da Comissão Central de Trabalhadores da Petrogal (coordena a sub-CT da Refinaria). Integra a Concelhia de Sines, a DORLA e a direcção inter-regional do Alentejo do PCP, bem como o organismo de coordenação das células do Partido na Petrogal/Galp. É eleito na AM de Sines.

 

Nem sempre foi assim

 

Como pode justificar-se o grande crescimento do trabalho com vínculos precários, num pólo industrial e logístico com as características deste?

Daniel Silvério propõe que se recue às décadas de 1980 e 1990. «É preciso lembrar o que foi a redução de efectivos nas empresas, a substituição de trabalhadores que tinham vínculos efectivos por trabalhadores que passaram a ter vínculos precários» e ter presente que, «com a entrada de empresas prestadoras de serviços, os trabalhadores continuavam a fazer o que sempre tinham feito, apenas mudava a entidade patronal», conforme a empresa que ia ganhando os contratos de outsourcing, para manutenção e para outras áreas específicas, fundamentais para a produção. «No tempo da CNP, da EPSI ou mesmo da Neste, a actual Repsol chegou a ter mais de mil trabalhadores efectivos», e hoje ocupa «pouco menos», mas «efectivos da Repsol e com os direitos que têm os trabalhadores da Repsol são 445». E os restantes? «Todos são necessários ao funcionamento das instalações, mas têm menos direitos», e «o mesmo se passa noutras grandes empresas, como a Petrogal ou a EDP». «É aqui que começa a precariedade», acusa Daniel Silvério.

João Damas concretiza. «O carvão, as cinzas, as turbinas, as caldeiras e as águas são áreas indispensáveis para o funcionamento da central e desde o início tiveram pessoal da própria EDP», mas «hoje, do quadro da EDP, temos o pessoal da sala da comando, que opera as caldeiras e as turbinas». O carvão está entregue a uma empresa exterior, a Manindústria, mas esta «não tem cá ninguém a dirigir os seus trabalhadores e quem os dirige é a O&M, uma empresa formada pela própria EDP com essa única função». Nas águas, «é a mesma coisa», com a Engigás, do Grupo Somague, e nas cinzas «é uma empresa da Alstom». «O conjunto de pessoas é o mesmo, tudo continua a produzir como antes, mas onde estavam trabalhadores do quadro e com os direitos previstos no acordo colectivo de trabalho, estão agora trabalhadores sem esses direitos», resume João Damas, que coloca a principal responsabilidade pelo agravamento da precariedade de emprego nas grandes empresas, «como a minha, que enche a boca com grandes declarações sobre a sua responsabilidade social». Acrescenta ainda que «a EDP criou uma empresa, a Estudos e Consultoria, só para ter pessoal que fica excluído da aplicação do acordo colectivo de trabalho». Serão «umas 600 ou 700 pessoas, a nível nacional, quase todos quadros, pessoal formado, ligados a obras, com contratos de seis meses, de um ou dois anos...»

«O complexo industrial de Sines tinha por base grandes empresas públicas da energia e da química» e, para Helder Guerreiro, «a privatização veio centrar os objectivos na geração de lucro para os accionistas, que querem resultados imediatos», e para isso «as empresas recorrem a todos os esquemas que podem, para aliviarem custos». Do ponto de vista dos patrões, «o ideal seria as empresas não terem trabalhadores e sermos todos “prestadores de serviços”, mas as empresas não podem funcionar assim».

Lembra ainda que «houve também o ataque por via da legislação do trabalho», e «chegamos assim a uma autêntica equação: privatização mais desregulamentação das relações laborais é igual a precarização e perda de direitos dos trabalhadores, incluindo os efectivos». Helder assinala que, «apesar de tudo, mantém-se a tradição de organização dos trabalhadores, tem havido lutas, e tem sido possível travar esta ofensiva», ainda que com graves perdas.

A «fórmula da precariedade» tem efeitos ainda mais graves devido ao desemprego. Telma Capucho salienta que «nesta região temos um nível de desemprego estrutural muito elevado, acima da média nacional, tanto nos concelhos do Litoral, como em todo o Alentejo». Com as grandes obras em curso – como as da refinaria da Petrogal ou as da fábrica da Artenius, que em conjunto ocuparão cerca de cinco mil trabalhadores – «isso é ultrapassado, mas com um carácter absolutamente temporário». E a verdade é que «nos quatro concelhos do Litoral Alentejano não conseguimos identificar outros grandes empregadores, para além das câmaras municipais», o que constitui «um forte factor de pressão sobre os trabalhadores das empresas do complexo de Sines, para retirada de direitos e redução de remunerações».

No caso da nova refinaria, Helder Guerreiro afirma que «o mais grave é a forma como têm sido contratados os trabalhadores: a Petrogal contratou uma empresa, a espanhola Técnicas Reunidas, e esta foi sub-contratando outras, que por sua vez também sub-contrataram... passando por várias empresas de trabalho temporário, que nascem como cogumelos – e tudo isso vai reduzindo a parte que o trabalhador acaba por receber».

João Damas explica que, com vínculo precário, «as pessoas continuam a trabalhar, mas não têm o mesmo quadro de direitos, aumenta a polivalência de funções, deixam de ser respeitados os acordos colectivos de trabalho» e, «com baixa qualificação, com o vínculo laboral fragilizado, com fraco poder reivindicativo, os trabalhadores acabam por se sujeitar a tudo e mais alguma coisa».

 

O mau exemplo do Terminal XXI

Martinho Pinho não aceita que, em público e sem reticências, o Governo, a Administração do Porto de Sines e o próprio Presidente da República refiram o terminal de contentores como exemplo do que deve ser o serviço portuário. Mensagem semelhante transmitem os generosos incentivos concedidos à operadora. O Terminal XXI funciona desde 2004 em regime de concessão à multinacional PSA e tem como principal cliente outra multinacional, a MSC, mas nada tem de bom exemplo.

A actividade portuária possui um regime laboral específico, que prevê obrigações das empresas operadoras quanto à contratação de pessoal especializado, portador de carteira profissional e integrado no contingente portuário nacional. Ora, afirma Martinho Pinho, «a precariedade existe» e no Terminal XXI «passam-se coisas gravíssimas». «Logo que ali chegaram», os representantes da PSA «pretenderam não contratar trabalhadores portuários», mas «tiveram que negociar com o sindicato, foi para lá pessoal do contingente comum dos portos, e recorriam à empresa de trabalho portuário (ETP), a Eporsines, quando precisavam» de mais mão-de-obra, em momentos de pico de actividade.

A dada altura, «acharam que os trabalhadores estavam a sair-lhes caros e decidiram formar um sindicato; a seguir, formaram a sua ETP, a Laborsines. Por fim, «arranjaram um acordo de empresa que permite praticamente tudo».

«Daí para cá, tem sido um descalabro», afirma Martinho. Primeiro, «contratavam jovens do Fundo de Desemprego, que trabalhavam um mês de borla, a fazer turnos e horas sem receber», e «agora já contratam pessoas à hora, à semana ou ao mês, por ordenados irrisórios, na casa dos 500 euros». Os turnos são de oito horas, acrescidos de duas horas para a «flexibilidade», que não são pagas e são «descontadas» quando a empresa manda o trabalhador ficar em casa. Após aquelas dez horas, «a jornada pode prolongar-se mais quatro, cinco ou seis horas, ganhando mais 50 por cento na primeira hora e mais 75 por cento nas seguintes». Citando relatos de trabalhadores que contactam o sindicato, conta que «há quem trabalhe 16 ou 17 horas por dia, só falta dormirem lá». Mesmo de folga, a empresa pode chamá-los a qualquer hora e não se arriscam a recusar, porque já houve quem perdesse o emprego», no final do contrato, por não aceitar tais condições.

Um caso exemplar sucedeu com um grupo que tinha marcado para a folga um jogo de paintball. A Laborsines «não se limitou só a chamar os trabalhadores, também ligou para o campo de jogos e desmarcou-lhes o encontro, porque tinham que ir trabalhar».

Sabe-se que a PSA Sines vai perder a linha Far East da MSC, dos maiores porta-contentores, mas muito provavelmente não se ouvirá falar em despedimentos, porque «pura e simplesmente deixam cair não se sabe quantos destes jovens contratados, que não têm vínculo nem à PSA nem à Laborsines, que os contrata através de empresas de trabalho temporário».

Na Eporsines, que fornece os trabalhadores para a Portsines, «a situação está estabilizada». Mas «a concorrência desleal no terminal vizinho é muito preocupante», reconhece o dirigente.


Quem ganha?

Quando certa área de uma grande empresa é sub-contratada, deixa de ser considerada um custo fixo e passa a ser uma despesa, o que é mais favorável do ponto de vista fiscal e financeiro. Ao mesmo tempo, como as condições de trabalho nesses empreiteiros são inferiores, acabam por servir como forma de pressão para retirar direitos ao pessoal do quadro.

Aquilo que todos perdem só vai para um lado: o lado dos accionistas. Foi assim que, depois de se tornar um dos grandes accionistas da Galp, Américo Amorim passou a ser cotado como o homem mais rico de Portugal.

 

Unir para a luta

O complexo de Sines «tem uma importância estratégica para o País, tem um potencial imenso de criação de riqueza, mas esta riqueza não está a ser devidamente distribuída pelos trabalhadores». Para Telma Capucho, «os lucros dos accionistas poderiam reverter de forma mais justa para os trabalhadores e, se as empresas não tivessem sido privatizadas, reverteriam para o País e certamente não estaríamos a ser todos tão penalizados com os aumentos dos combustíveis, por exemplo». Na actual situação, «temos que insistir na reivindicação de que todos os trabalhadores que desempenham funções de carácter permanente devem ter os mesmos direitos que os efectivos», e «a maneira de garantir essa igualdade é a sua integração como efectivos da empresa para que, ao fim e ao cabo, estão a trabalhar».

«É isto que está previsto na Constituição e no próprio Código do Trabalho», sublinha Daniel Silvério, referindo que «já foi assim nestas empresas» e «temos casos mais recentes em que se consegue fazer valer a resistência dos trabalhadores e a acção dos sindicatos».

Na mobilização para a manifestação nacional de dia 19, João Damas relata que «estamos a fazer rondas de plenários, debatendo com os trabalhadores os problemas mais gerais, em ligação com questões específicas». Conta ainda que «o esforço de sindicalização na Manindústria, na Alstom e na Engigás tem sido bem sucedido» e que «com a apresentação de cadernos reivindicativos, tem-se conseguido resultados positivos, seja em termos de remuneração, seja de condições de segurança e saúde». Houve «processos de luta e mesmo greves, como no carvão». Aqui «há pessoas que trabalham há 20 anos, a fazer o mesmo serviço, para empresas que se vão sucedendo, conforme ganham os contratos com a EDP». Trabalhadores nesta situação atingem «um ponto em que já não suportam os problemas e dizem “basta!”». Outros «viram o resultado da união no sector do carvão e encetaram processos semelhantes, primeiro nas águas, e depois nas cinzas».

«Há um trabalho de persistência dos sindicatos, dos dirigentes e dos nossos camaradas que é preciso valorizar», diz Telma Capucho, realçando que «é importante fazer-se a aproximação aos trabalhadores com vínculos precários e conseguir que muitos deles se sindicalizem». Admite que «isto leva o seu tempo», mas «esta linha de trabalho vai ter resultado e também terá expressão na participação da região no dia 19 e nas lutas que se vão seguir».



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