Na passagem do seu 90.º aniversário
- entrevista com Baptista Pereira

Um homem chamado «Gineto»

Bap­tista Pe­reira nasceu em Alhandra a 7 de Março de 1921, um dia de­pois fun­dação do PCP, a que viria a aderir em 1946, e viveu a sua in­fância junto ao Tejo. So­eiro Pe­reira Gomes, que se fixou nesta vila na dé­cada de 30, es­co­lheu-o para per­so­nagem do seu mais co­nhe­cido ro­mance, Es­teiros, que conta a his­tória das cri­anças obri­gadas a tra­ba­lhar nos te­lhais da vila e onde o «Gi­neto» (Bap­tista Pe­reira) já re­ve­lava grandes qua­li­dades de na­dador.

No ano em que com­ple­taria 90 anos, tal como o seu Par­tido, lem­bramos o «maior na­dador por­tu­guês de sempre», o «homem ver­tical», o «ope­rário lu­tador e so­li­dário» que foi Bap­tista Pe­reira, com uma en­tre­vista (iné­dita em Por­tugal) que José Ca­sa­nova, ac­tual di­rector do Avante!, lhe fez no lon­gínquo Natal de 1972, em Bru­xelas.

Image 6971

«Atra­ves­sava o ca­niço dos es­teiros e, mesmo ves­tido, ati­rava-se ao rio. A cor­rente era forte, mas na outra margem havia pás­saros, toiros bravos a pastar e va­lados des­co­nhe­cidos».

Es­teiros – So­eiro Pe­reira Gomes

«É ver­dade, foi assim que co­mecei... mas não me lembro de quando co­mecei a nadar; eu creio que sempre soube nadar...»

Bap­tista Pe­reira: o maior na­dador por­tu­guês de sempre! Para além disso: homem ver­tical, de olhos abertos para o mundo, corpo sa­zo­nado pelas chuvas e pelo Sol do Ri­ba­tejo e por uma vida de luta in­ces­sante.

Atleta que nunca teve um ins­trutor nem sub­sí­dios ofi­ciais era, aos 14 anos de idade, o me­lhor por­tu­guês nos 200, 400 e 1500 me­tros. E foi-o du­rante 15 anos con­se­cu­tivos. Cam­peão de todas as provas no Tejo... («o mar», como lhe chama), nesse Tejo que ele co­nhece como as palmas das mãos.

En­con­trar Bap­tista Pe­reira em Bru­xelas – Natal/​72 – é, mais do que rever o velho amigo, re­lem­brar, através do exemplo con­creto de uma vida, esta ver­dade in­dis­cu­tível: viver é lutar, é en­carar o mundo de frente, rosto vi­rado para os lados donde sopra a bor­rasca, co­ragem todos os dias re­no­vada.

E é bem claro o preço que se paga por esta ver­ti­ca­li­dade.


Alhandra deve-lhe muito


Na­tu­ral­mente, os êxitos des­por­tivos de Bap­tista Pe­reira cedo co­me­çaram a ser no­tados. Os alhan­drenses, em es­pe­cial, se­guiam com atenção as suas provas. Aliás, a vila de Alhandra vivia, por essa época, um pe­ríodo de ex­tra­or­di­nário im­pulso de que So­eiro Pe­reira Gomes era o prin­cipal res­pon­sável. Os re­sul­tados do es­pan­toso es­forço co­lec­tivo em­pre­en­dido sob a ori­en­tação do autor de Es­teiros, ricos de sig­ni­fi­cação, apa­re­ciam todos os dias: cursos de gi­nás­tica, or­ga­ni­zação de bi­bli­o­tecas, con­fe­rên­cias sobre temas des­por­tivos e cul­tu­rais... A cons­trução de uma pis­cina pelo povo de Alhandra terá sido, no campo das coisas ma­te­riais, a mais im­por­tante re­a­li­zação desse pe­ríodo.

Pe­reira Gomes é, pois, as­sunto in­fa­lível sempre que se fala com o «Gi­neto» dos Es­teiros.

«Jo­a­quim So­eiro Pe­reira Gomes foi o homem mais ex­tra­or­di­nário que eu co­nheci, um homem bom, um homem in­te­li­gen­tís­simo, um grande amigo do povo. Foi um dos que me en­si­naram as pri­meiras le­tras, e o pri­meiro fato e os pri­meiros sa­patos que tive foi ele quem mos deu; lembro-me como se fosse hoje: era um fato aos qua­dra­di­nhos pretos e brancos e uns sa­patos ama­relos de bi­queira larga».

De­pois, pas­sando para ou­tros as­pectos mo­ti­va­dores da sua ad­mi­ração por So­eiro:

«Alhandra deve-lhe muito... se temos uma pis­cina e ali se criou um grande vi­veiro de na­da­dores po­demos agra­decer-lhe a ele.

«Grande obra, aquela pis­cina!

«O Pe­reira Gomes tra­ba­lhava dia e noite: de dia na Fá­brica Ci­mentos Tejo, onde era chefe de es­cri­tório; à noite e aos do­mingos na pis­cina, ao nosso lado, ao lado dos ope­rá­rios».

E a con­versa pros­segue na noite fria de Bru­xelas. So­eiro «ao lado dos ope­rá­rios» é as­sunto que não tem fim.

Image 6973


Te­ne­rife – Ca­ná­rias, 1947


Mas vol­temos ao Bap­tista Pe­reira-na­dador, ou­çamos a des­crição das suas mil aven­turas por esse mundo fora:

«As pri­meiras provas que fiz no es­tran­geiro foram graças à ajuda de duas ou três pes­soas que pa­garam as des­pesas, porque eu não tinha di­nheiro para isso. De­pois ga­nhei muito di­nheiro lá fora, que aqui nunca ga­nhei nada que se visse. Lembro-me da pri­meira prova que dis­putei no es­tran­geiro; foi em Te­ne­rife, nas Ca­ná­rias e foi de­pois dessa prova que me ir­ra­di­aram do des­porto na­ci­onal por dois anos».

Porquê esta ir­ra­di­ação? Bap­tista Pe­reira pre­fere não falar do caso. Diz apenas:

«Não foi por ter feito nada de mal». Adi­ante.

«De­pois da ir­ra­di­ação, em 1949, con­segui re­con­quistar os tí­tulos na­ci­o­nais que eram, nessa al­tura, de um na­dador ma­dei­rense, o Zé da Silva».

E é a partir daqui que se inicia, ver­da­dei­ra­mente, a cam­panha mun­dial do na­dador alhan­drense: cam­peão mun­dial da tra­vessia do Es­treito de Gi­braltar, em 1953 e 3.º lugar na Ma­ra­tona do Nilo (42 Km), no Natal do mesmo ano («Vinha em pri­meiro lugar a 15 mi­nutos do fim com quatro horas de avanço do se­gundo, mas pa­ra­lisei da cin­tura para baixo»); 1.º na tra­vessia da Mancha, entre con­cor­rentes de 23 países; 1.º nos Es­tados Unidos da Amé­rica, no Brasil, em França... numa de­mons­tração de ca­pa­ci­dades na­tu­rais in­vul­gares, de uma força de von­tade e de um es­pí­rito de sa­cri­fício no­tá­veis.

«Sa­cri­fi­quei-me muito, muito... as provas de longa dis­tância são ter­rí­veis; chegam a ser de­su­manas; saímos da água in­chados, a língua não nos cabe na boca. Mas tinha de ser, só assim era pos­sível chegar onde che­guei».

Bap­tista Pe­reira: atleta de ex­cepção que ainda re­cen­te­mente re­cebeu a no­tícia, vinda das lon­gín­quas Amé­ricas, de que es­tava in­cluído no «Quadro de Honra» dos seis me­lhores na­da­dores do Mundo; «homem que nunca foi me­nino» e que é per­so­nagem cen­tral de um dos mai­ores ro­mances da li­te­ra­tura por­tu­guesa con­tem­po­rânea.

Image 6974


O mi­li­tante co­mu­nista


A ficha de mi­li­tante foi pre­en­chida de­pois do 25 de Abril de 1974, como não podia deixar de ser, mas Bap­tista Pe­reira era membro do PCP desde 1946. A sua re­lação com o mundo de tra­balho desde muito novo e com fi­guras como So­eiro Pe­reira Gomes, Alves Redol e An­tónio Dias Lou­renço, entre muitos ou­tros, con­tri­buiu para que ci­mentar a cons­ci­ência de classe que sempre re­velou.
Antes da Re­vo­lução dos Cravos, Bap­tista Pe­reira mi­litou na Cé­lula Co­mu­nista da
CIMA, onde co­la­borou na dis­tri­buição do Avante! com Be­a­triz Falcão. Par­ti­cipou nas lutas rei­vin­di­ca­tivas de 60 e 70.
Como co­mer­ci­ante de su­cata, ajudou fi­nan­cei­ra­mente o PCP e a sua casa serviu de apoio a muitos ca­ma­radas em di­fi­cul­dades.
Apesar de vá­rias vezes con­vi­dado a in­te­grar as listas au­tár­quicas, sempre re­cusou por não saber ler nem es­crever. Apoiou sempre as listas do Par­tido Co­mu­nista Por­tu­guês. Bap­tista Pe­reira fre­quen­tava o Centro de Tra­balho de Alhandra di­a­ri­a­mente.

Image 6975


Cro­no­logia

As vi­tó­rias de um cam­peão


27 de Se­tembro de 1936

Es­treia ofi­cial de Bap­tista Pe­reira en­quanto na­dador, com 15 anos, du­rante a tra­vessia do Tejo (Tra­faria/​Pe­drouços). Foi 3.º na sua ca­te­goria.
24 de Agosto de 1937
Na Pis­cina do Sport Algés e Da­fundo, bate o re­corde na­ci­onal dos 400 me­tros li­vres com o tempo de 5 mi­nutos e 50 se­gundos.
29 de Agosto de 1937
Re­a­lizou a tra­vessia do Tejo (Tra­faria/​Pe­drouços). Foi o 1.º na sua ca­te­goria.
Maio de 1938
Vence todas as provas de se­lecção em que par­ti­cipa com vista aos Cam­pe­o­natos da Eu­ropa de Na­tação
3 de Ou­tubro de 1938
Atinge a in­ter­na­ci­o­na­li­zação, du­rante a re­a­li­zação em Lisboa do Por­tugal/​Ale­manha, tendo sido 2.º clas­si­fi­cado nos 400 me­tros li­vres, logo de­pois do cam­peão alemão.
1939
In­tegra a equipa por­tu­guesa que em Lisboa de­fronta a Hun­gria.
1938/​40/​41 e 42
Vence a tra­vessia da Póvoa.
1948
Ganha a tra­vessia da Baía de Se­simbra.
Em Ou­tubro de 1950
O cam­peão da na­tação ar­gen­tino, An­tónio Aber­tondo, ven­cedor da Mancha e do Es­treito de Gi­braltar, acon­selha Bap­tista Pe­reira a de­dicar-se a provas de fundo.
25 de Agosto de 1953
Faz Alhandra/​Rocha de Conde de Óbitos/​Alhandra, na­dando 166,600 qui­ló­me­tros em 26 horas e 12 mi­nutos, ba­tendo o Re­corde Na­ci­onal de dis­tância.
20 de Se­tembro de 1953
Nada das Ber­lengas a Pe­niche (cerca de 20 qui­ló­me­tros), pre­pa­rando-se para novos co­me­ti­mentos.
25 de Ou­tubro de 1953
Lança-se à água na Ilha de las Pa­lomas, em Es­panha, lu­tando contra as cor­rentes do Es­treito de Gi­braltar, mas atin­gindo Ponte de Cires, no Norte de África, no tempo de 5 horas e 4 mi­nutos que passou a cons­ti­tuir re­corde da tra­vessia do es­treito.
23 de De­zembro de 1953
Na ma­ra­tona do Nilo, Bap­tista Pe­reira co­manda grande parte da prova, com­ple­tando 39 dos 42 qui­ló­me­tros em 10 horas e 10 mi­nutos, mas acaba por de­sistir. A quase to­ta­li­dade dos par­ti­ci­pantes aban­donam igual­mente a prova, de­vido à baixa tem­pe­ra­tura das águas. A fe­de­ração egípcia, sa­be­dora das anor­mais di­fi­cul­dades, acaba por con­tem­plar os de­sis­tentes com pré­mios.
24 de Julho de 1954
Faz a tra­vessia Pe­niche/​Ber­lengas (cerca de 20 qui­ló­me­tros).
Julho de 1954
Ro­de­ando a Ilha de Abscon, em Atalntic City, Bap­tista Pe­reira nada 48 qui­ló­me­tros.
21 de Agosto de 1954
Vence a tra­vessia do Canal da Mancha
Em 1955
Faz parte da tra­vessia de Ita­pa­rica para a ci­dade de Sal­vador da Baia/​Brasil, não com­pe­tindo por falta das equipas de se­gu­rança contra tu­ba­rões. Faz 22 dos 50 qui­ló­me­tros do per­curso.
Em 1956
Bate o seu pró­prio re­corde, atra­ves­sando pela se­gunda vez o Es­treito de Gi­braltar, fa­zendo o tempo de 4 horas, 34 mi­nutos e 6 se­gundos.
1 de Julho de 1956
Fica em 4.º lugar na III Tra­vessia In­ter­na­ci­onal do Sena, Paris.
14 e 15 de Julho de 1956
Par­ti­cipa no Cri­tério In­ter­na­ci­onal de Na­tação em França, prova entre o rio Loire e Nantes com duas dis­tân­cias (60 e 40 qui­ló­me­tros), a qual era con­si­de­rada o cam­pe­o­nato do mundo de longa dis­tância. Vence a de 40 qui­ló­me­tros e fica clas­si­fi­cado em 3.º lugar no seu con­junto.
Em 1959
Bate o re­corde de per­ma­nência da água, per­cor­rendo 204 qui­ló­me­tros em 28 horas e 34 mi­nutos.
Em 1967
Bap­tista Pe­reira ter­mina o seu per­curso de na­dador tendo-se ati­rado à água na inau­gu­ração da Pis­cina Mu­ni­cipal de Vila Franca de Xira. No seu cur­rí­culo contam-se, entre ou­tras, 19 vi­tó­rias em Cam­pe­o­natos Na­ci­o­nais, 14 re­cordes na­ci­o­nais ba­tidos, 29 provas no rio Tejo e 1.º clas­si­fi­cado
na tra­vessia da Baía de Se­simbra.



Mais artigos de: Temas

Companheiros de caminho

A porta abriu-se e Pedro deixou passar um homem alto, magro e com uma cara ta­lhada por rugas, mas atrac­tivo. En­trou com a ca­beça baixa, que só le­vantou quando a porta se fe­chou. Cum­pri­mentou os donos da casa, Isabel e Jorge, e agra­deceu a hos­pe­dagem que estes amigos lhe davam a pe­dido de Pedro, velho amigo dos dois.