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A Colômbia no gume da história (1)
Duas imagens do mesmo povo

• Miguel Urbano Rodrigues


Por que motivo é a Colômbia a primeira prioridade na política de Washington para o Continente? Por que aprovou o Congresso dos EUA verbas milionárias para o Plano Colômbia e a Casa Branca se esforçou inutilmente para envolver a União Europeia no projecto?
A resposta a essas perguntas implica um conhecimento mínimo da realidade colombiana e da história do país.

A imagem que a Colômbia hoje projecta no mundo não pode ser mais negativa. O nome do país aparece associado às mafias internacionais do narcotráfico, a quadrilhas que controlam o negócio da prostituição, a organizações criminosas de todo o tipo.

A simples apresentação de um passaporte colombiano chama a atenção em qualquer fronteira. Nos aeroportos europeus e norte-americanos os cidadãos da Colômbia são com frequência radiografados. A nacionalidade é suficiente para inspirar desconfiança. As polícias temem que qualquer colombiano possa transportar droga no estômago ou nos intestinos.

A história ensina-nos, entretanto, que os anátemas contra determinados povos assentam na mentira, na desinformação e em preconceitos racistas.

Assim aconteceu com o Vietname, com a Argélia, com Cuba. Os povos desses três países foram por muito tempo olhados como lupen, lixo da humanidade. Qualquer deles, entretanto, levou à vitoria revoluções de significado planetário por haverem resistido vitoriosamente ao imenso poderio de grandes potências imperiais, infligindo-lhes humilhantes derrotas.

O conhecimento da história profunda da Colômbia ajuda a desfazer a legenda negra que atinge o seu povo.

Já no final do século XVIII a insurreição dos comuneros havia chamado a atenção da Europa para a coragem espartana dos camponeses colombianos.

Décadas depois, a Colômbia desempenhou um papel decisivo na gesta da Revolução Libertadora das colónias espanholas.

Essa outra imagem, a da Colômbia revolucionária, foi quase apagada da história.

Lembrei em artigo recente que as tropas colombianas constituíram o núcleo do exército internacionalista que na altiplanura de Ayacucho derrotou o último exército espanhol do Continente americano.

Foram os oficiais e soldados colombianos que durante anos impediram com a sua presença fraterna que a anarquia se generalizasse nas terras do antigo vice reino do Peru.

Os EUA contra Bolívar

Bolívar sonhava com uma grande Confederação Latino-americana que, além das jovens repúblicas por ele libertadas, integrasse o México, os territórios da América Central, o Chile e as antigas Províncias do Prata. Sonhava com uma grande e progressista nação latino-indo-americana na qual via uma antecipação do futuro mas distante estado universal.

O malogrado Congresso Anfictionico do Panamá surgia no seu imaginário como o prólogo desse amanhã.

Esse projecto humanista e revolucionário chocou-se desde o início com a oposição das grandes potências da época. Os Estados da Santa Aliança pretendiam restabelecer o absolutismo dos Bourbons nas antigas colónias espanholas. A Inglaterra, que seria até final do século a potência hegemónica no conjunto da região, opunha-se à Santa Aliança, mas estava empenhada na balcanização da América Latina, para mais facilmente controlar a economia das novas repúblicas. OS EUA, que não eram ainda uma potência marítima mas tinham grandes ambições, combateram tenazmente o ideário bolivariano. Durante a guerra declararam-se neutros. Na prática não o foram. Venderam armas à Espanha e recusaram-nas aos exércitos patriotas.

A história não se repete. Mas impressiona a semelhança de métodos e linguagens hoje utilizados pelos estrategos da Casa Branca e do Departamento de Estado com aqueles que os governos de Monroe (com o apoio de Jefferson) e J. Quincy Adams usaram para atingir um triplo objectivo: esfacelar a Grande Colômbia, inviabilizar a unidade latino-americana e neutralizar e afastar Bolívar.

É inegável que a Inglaterra colaborou, mas o trabalho sujo foi desenvolvido pelos representantes dos EUA em Bogotá, Caracas e Lima.

A simples leitura da correspondência trocada entre esses «diplomatas» norte-americanos e secretários de Estado como Clay e os grandes inimigos do Libertador é esclarecedora da amplitude e perversidade da conspiração montada para destruir a obra de Bolívar.

A documentação oficial comprova que William Tudor, o agente americano em Lima, incentivou a invasão da Colômbia pelo general La Mar, presidente do Peru, e apoiou a rebelião simultânea de generais colombianos no Equador.

Ainda mais comprometedora é a correspondência do general Santander - ao tempo presidente em exercício da Colômbia, na ausência do Libertador - com Clay e com Harrison, futuro presidente dos EUA, então representante em Bogotá.

Nessas cartas competem nas injúrias e calúnias a Bolívar, definido como um tirano e um usurpador, inimigo das liberdades, Bonaparte americano, flagelo dos povos, e caudilho sanguinário com ambições a uma coroa imperial.

O próprio Jefferson o criticou com dureza por defender a libertação dos escravos e dos índios e a substituição da ordem económica e social existente por outra menos injusta e cruel.

A guerra, pela sua própria dinâmica, abrira fissuras entre aqueles que participavam na luta pela independência. Unidos por um objectivo político comum, perseguiam metas incompatíveis no tocante ao tipo de sociedade que deveria emergir da ruptura com a Espanha. Na Colômbia formou-se um estamento social cujo núcleo principal saiu da elite dos generais e coronéis do exército libertador e do corpo de legisladores e da alta burocracia. Alguns, proprietários de enormes latifúndios, substituíram os antigos terratenientes peninsulares e, pelo poder que detinham como militares ou funcionários, constituíram um factor de contenção de mudanças revolucionárias. Essa gente, enriquecida, sentia-se próxima da antiga oligarquia e identificava em Bolívar uma ameaça aos privilégios adquiridos. Em Santander viam, pelo contrário, um aliado.

Era utópico o projecto de Bolívar? Sim. Não havia compatibilidade possível entre ele, a estrutura social das novas repúblicas e os actores que se moviam no palco do poder. Mas o seu carácter romântico e paternalista não lhe diminui nem o mérito nem a grandeza.

Uma oligarquia kafkiana

Os leitores de Garcia Marquez, através dos biombos e espelhos da sua obra, são com alguma frequência colocados perante o retrato de uma oligarquia do século XX com toques kafkianos.

Surpreende o seu imobilismo. Diferentemente de outras, a colombiana não evoluiu.

Nas últimas décadas, a vigência do Acordo entre dois partidos - o Conservador e o Liberal -, ambos instrumentos de um sistema social monolítico, permitiu que a sociedade colombiana caminhasse pelo tempo adiante permanecendo, afinal, imóvel, na fidelidade ao modelo (actualizado) imposto pelos generais que amaldiçoavam Bolívar e tratavam de manter e reforçar os privilégios da oligarquia crioula, herdeira e defensora da velha ordem colonial.

A referencia a Kafka talvez ajude a compreender que a Colômbia oficial do início do século XXI insista em venerar como herói nacional o general Santander, o inimigo número um de Bolívar, e tenha comemorado respeitosamente o sesquincentenário do nascimento do general Obando que mandou assassinar o marechal Sucre (o vencedor de Ayacucho e o mais puro dos heróis da Revolução Libertadora) mas foi depois guindado à Presidência da República.

Tal como acontece com as personagens das tragédias gregas, a Colômbia como personagem da história exibe duas imagens.

Uma é a da oligarquia anti-bolivariana que continua a contemplar a nação como um rebanho humano cuja missão seria servi-la e torná-la ainda mais rica. Como tumores gerados pela sua política aí estão a mafia do narcotráfico, a escória humana ligada ao comércio do sexo, os bandos de paramilitares assassinos e um exército concebido para reprimir o povo.

No reverso está a outra Colômbia, herdeira do espírito de fraternidade dos esquadrões de Ayacucho, revolucionária, internacionalista, humanista.

Para se entender minimamente uma sociedade onde a palavra violência, endémica, adquiriu um significado sociológico próprio, julgo útil lembrar que a um exército pretoriano que, desde Francisco de Paula Santander, seu criador, existe para funcionar como instrumento de repressão contra o povo, se contrapõe outro, o das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia - Exército do Povo (FARC - EP).

Este, justificando o nome, é hoje a materialização do exército ideado por Bolívar como «o povo em armas».

Não há na América Latina capitalista e imperializada uma força armada com raízes no povo que apresente semelhanças com essa guerrilha legendária, sem precedentes pela longevidade, estrutura, coerência ideológica e pelas suas concepções estratégicas e tácticas.

A paz e a guerra

O povo da Colômbia deseja ardentemente a paz. A oligarquia simula trabalhar por ela, mas tudo faz para a impossibilitar.

Andrés Pastrana conquistou a Presidência ao compreender que a promessa da paz funcionaria como poderosa alavanca eleitoral. As sondagens colocavam-no muito atrás do seu adversário liberal. O compromisso de «negociar» com as FARC foi o trunfo que o levou à Casa de Nariño.

A criação de uma Zona Desmilitarizada maior do que a Suíça (42 000 km2) foi recebida pelo povo com uma imensa esperança.

O Poder não fez entretanto jogo limpo. As FARC iniciaram o Diálogo - é a palavra que utilizam - com propostas muito concretas. Os 10 Pontos para um Governo de Reconciliação e Reconstrução Nacional, definidos em 93, sintetizam um projecto de sociedade democrática e humanizada.

Pastrana afirmou várias vezes estar de acordo com o espírito das reivindicações das FARC. Mas a «negociação», frequentemente interrompida por largos períodos, nunca chegou a ser sequer um Diálogo franco como pretendem as FARC.

Da parte do Poder, Pastrana tentou ganhar tempo. Continuou a falar de Paz, mas na primeira metade do seu mandato o Plano Colômbia tomou forma e entrou em execução. Simultaneamente, os bandos paramilitares de Carlos Castaño intensificaram a sua actividade criminosa. Ora o Plano Colômbia é o instrumento da intervenção norte-americana, e os paramilitares são o instrumento criado pelas Forças Armadas para funcionar como organização civil criminosa, por elas armada e tutelada. O presidente é uma peça secundária numa engrenagem trituradora.

Os EUA pretendem justificar o Plano Colômbia afirmando que a sua razão de ser é o combate à droga. Estamos perante uma dupla e grosseira mentira. O Plano Colômbia tem por objectivo estratégico a destruição das FARC. Quanto à mafia dos paramilitares (que mantém intimas relações com a CIA e a DEA) desempenha hoje um papel fundamental no tráfico da droga. O paramilitarismo - o neologismo tornou-se de uso rotineiro na Colômbia - nasceu como política de Estado no âmbito da Doutrina de Segurança nacional.

A trágica praxis do processo colombiano demonstra que o Estado Colombiano, a oligarquia que o controla e o governo dos EUA não estão empenhados em encontrar soluções eficazes para o combate à droga. O plano das FARC para a erradicação gradual das plantações de coca é simples, funcional e barato. O Governo nunca se propôs sequer a discuti-lo na mesa do Diálogo.

Existe, com vista a uma solução política negociada, uma Agenda Comum para a Mudança rumo a uma Nova Colômbia. É um documento breve e ambicioso. Foi assinado, a 6 de Maio de 1999, pelos representantes do Executivo e das FARC.

O Governo não deu continuidade a essa iniciativa positiva.

A própria troca de prisioneiros tem esbarrado com obstáculos sucessivos levantados pelas Forças Armadas e pelo Poder Judicial. Quando a primeira fase parecia prestes a concretizar-se, sob a supervisão internacional da Comissão Facilitadora, o Estado Maior do Exército atrasou o andamento do processo, invocando ridículos argumentos jurídicos. Simultaneamente, o Procurador da Republica interveio, sugerindo que fosse imposto um estado de emergência equivalente ao estado de sítio, saída que no seu entender permitiria ao Governo, investido de poderes discricionários, superar os entraves jurídicos que impediriam a troca de prisioneiros. Cabe dizer que a emenda seria pior do que o soneto.

Quando no horizonte surgia um luar de esperança, logo desapareceu.


O medo de Washington

Porquê a Colômbia e não outro país - repito - se tornou para a Administração Clinton a primeira prioridade na definição dos objectivos estratégicos relativos à América Latina?

Tive a oportunidade, logo após a posse de George W. Bush, de assistir a uma mesa redonda promovida sobre o tema pela CNN. Não sem surpresa dos jornalistas que mediavam o programa, o assessor do novo presidente para Assuntos Latino-americanos e um ex-subsecretário de Estado de Clinton coincidiram quase totalmente na análise da problemática colombiana e no debate sobre as «soluções» para a crise.

Ambos defenderam formas de intervenção dos EUA que não impliquem o recurso ao envolvimento em combate de tropas norte-americanas; ambos atacaram com dureza Hugo Chavez, afirmando que os EUA não podem «tolerar» indefinidamente a sua política; ambos reconheceram que a não colaboração do Brasil dificulta muito a execução da componente militar do Plano Colômbia.

Como era de se esperar, as FARC foram caluniadas e todos os participantes, incluindo os jornalistas, repetiram exaustivamente os slogans da propaganda oficial norte-americana que apresentam os combatentes revolucionários colombianos como supostos aliados dos narcotraficantes.

Não merecem comentário essas calúnias.

O que me parece importante é o facto de no discurso de representantes do establishment ser identificável uma constante: o medo da desagregação do Estado colombiano e do caos continental que daí resultaria. Essa é, creio, a razão primeira do Plano Colômbia.

A história ensina-nos que a impossibilidade da destruição pelas armas de um inimigo acaba por funcionar como factor de desagregação do poder atacante por mais poderoso que ele seja. Assim tem acontecido desde o Império Romano, cuja decadência começou com o fim da expansão na Ásia (contido pela Pérsia Sassanida) e no Norte da Europa (no choque com os Germanos).

Acontece que as FARC – EP resistem vitoriosamente há quatro décadas a todas as ofensivas contra elas montadas. A sua luta inspira hoje o respeito e a admiração dos povos de toda a América Latina.

O Plano Colômbia é, afinal, uma tentativa imperial desesperada de alterar o rumo natural da historia.


Um gigante desconhecido

Com mais de 42 milhões de habitantes, a Colômbia é hoje, depois do México, o pais mais populoso entre aqueles que no mundo falam a língua espanhola.

Essa população está muito desigualmente distribuída por uma área de 1 139 000 km2 (mais do dobro da França), concentrando-se sobretudo nos férteis vales e mesetas das três cordilheiras andinas que atravessam o país de Norte a Sul.

Quase 80 por cento da população é hoje urbana. O subsolo é rico em petróleo, ouro e outros minérios. Apesar de um desenvolvimento industrial superior ao do dos demais países andinos, com excepção do Chile, a principal fonte de divisas é a exportação do café (segundo produtor mundial).

O PIB per capita é da ordem dos 7000 dólares e a taxa oficial de analfabetismo ronda os 9 por cento, sendo a esperança de vida de 71 anos.

Mais de 40 por cento das exportações dirigem-se aos EUA que lhe fornece 36,5 por cento das importações.

O Exército mantém nas fileiras cerca de 150 000 homens, efectivo apenas superado na América Latina pelo gigante brasileiro.

A Colômbia tem, desde a época colonial, grandes tradições culturais, e o castelhano falado nas regiões andinas é conhecido pela sua pureza, isto é, pela proximidade do idioma clássico introduzido pelos conquistadores.

Além das FARC-EP, que, segundo o Governo, mobiliza 16 mil soldados e oficiais permanentes e oito mil milicianos, operam no país outras duas organizações guerrilheiras, o Exército de Libertação Nacional (ELN), que contaria, segundo fontes oficiais, com 8000 homens, e o Exército Popular de Libertação (EPL), ultimamente muito golpeado.

Ainda de acordo com informações oficiais, as FARC estão implantadas em mais de 60 frentes de combate.

«Avante!» Nº 1428 - 12.Abril.2001